MÍSTICA DAS
BEATITUDES – AUTO-RETRATO DA ALMA DE JESUS
TOMANDO PERSPECTIVA
Se o Evangelho é a alma da Bíblia, então as Beatitudes são o
coração do Evangelho.
As oito Beatitudes, ou Bem-aventuranças, que formam o início
do Sermão da Montanha, são jubilosas exclamações que romperam da transbordante
plenitude do espírito do Cristo, após uma noite inteira de comunhão com Deus,
como diz o evangelista.
Quase no início da sua vida pública, passou Jesus uma noite
toda “em oração com Deus”, em êxtase, em
samadhi. A alma do Nazareno estava
mergulhada no oceano imenso da Divindade. E, quando, de madrugada, emergiu
desse banho de luz e força, de amor e felicidade, foi tão irresistível o
entusiasmo de que estava repleto, que não pode conter em si a divina plenitude,
e, como o sol nascente, irradiou os seus fulgores sobre os discípulos e o povo
que lhe correram ao encontro, sentindo ou adivinhando algo de extraordinário.
Desceu do monte, em cujo cimo havia passado a noite em
mergulho místico, e, chegando a uma esplanada e vendo a fome e a sede do povo,
sentou-se numa colina, e exclamou oito Bem-aventurados!... Bem-aventurados!...
As Beatitudes não são ensinamentos, a bem dizer; são
experiências pessoais da vida íntima de Jesus que romperam as válvulas de
retenção da sua alma e se espraiaram, irresistivelmente, sobre a humanidade de
todos os tempos e países. Toda a plenitude, quando atinge o clímax da sua
abundância, tende a difundir-se em derredor. Toda a explosão supõe uma
implosão, e a implosão mística de Jesus havia atingido o seu máximo nessa
noite, nas colinas de Kurun Hattin, ao sudoeste do lago da Galiléia.
As
Beatitudes são o auto-retrato de Jesus.
Por isto as Bem-aventuranças não devem ser lidas ou ouvidas
senão numa atitude de intensa espiritualidade. Quem lê ou ouve estas
exclamações de entusiasmo místico num estado de profanidade, ou mesmo de mera
intelectualidade, nada sentirá da sua sacralidade; possivelmente, as achará
absurdas e revoltantes. Imagine-se: chamar felizes os pobres, os sofredores, os
injustiçados, os famintos e sedentos, os que sofrem perseguição e difamação!
Onde se ouviu maior paradoxo, mais revoltante sadismo, mais acerba ironia!
Realmente, do plano horizontal do homem-ego, ninguém pode nem deve ler estas
palavras, que brotaram das luminosas profundezas do homem-Eu, do
homem-crístico, e só podem ser compreendidas e saboreadas dessa perspectiva de
experiência mística da qual brotaram.
Não são palavras ego-pensadas, são experiências
Cristo-vividas. Só quem pode dizer com Paulo de Tarso “já não sou eu que vivo –
o Cristo é que vive em mim”, só esse pode saborear devidamente as Beatitudes. O
homem ego-vivente, ficará apático, ou até revoltado, em face de tamanha
sublimidade.
Quanto menos o leitor for ego-agente e quanto mais for
Cristo-agido, tanto melhor compreenderá a sapiência dessa divina loucura.
É, pois, necessário que o leitor, antes de ler as
Beatitudes, se ponha no mesmo ambiente interior em que elas foram vividas
naquela bendita madrugada. Enquanto o homem não estiver devidamente sintonizado
com a alma divina do Universo, com o Cristo-cósmico, não estará em condições de
assimilar as lucerias e calorias das Bem-aventuranças do Cristo.
Aliás, esta sintonização Cristo-cósmica é o requisito para a
compreensão de toda e qualquer palavra de Jesus que os Evangelhos nos
conservaram. O que o grosso da humanidade entende por “meditação”, pouco ou
nada tem que ver com essa sintonização crística. Quem pensa e analisa não
entrou na verdadeira meditação, durante a qual o homem se deve calar, para que
Deus lhe possa falar.
Quando o homem fala – Deus se cala.
Quando o homem pensa – Deus se dispensa.
Quando o homem deseja algo – Deus se eclipsa.
A verdadeira meditação é simplesmente um total esvaziamento
de todo e qualquer conteúdo do ego-humano, para que a plenitude divina possa
fluir para dentro dessa vacuidade humana. A fonte da plenitude plenifica
somente a vacuidade. O homem ego-pleno não pode ser teo-plenificado, ou, em
linguagem bíblica: “Deus resiste aos soberbos (ego-plenos) e dá sua graça aos
humildes (ego-vácuos)”.
Neste mesmo
sentido disse o Mestre:
“Eu te agradeço, meu pai, que revelaste estas coisas aos simples e
pequeninos e as ocultaste aos eruditos... Quem não receber o Reino de Deus como
uma criança não entrará nele”.
Muitos não conseguem reduzir-se a uma atitude de não pensar
nada, e ficar ao mesmo tempo plenamente conscientes; quando não pensam, estão
em perigo de cair em transe, na auto-hipnose, no sono, e nada resolvem. Mas
quando o homem desce ao nadir do pensamento e sobe ao zênite da consciência,
então está em verdadeira meditação, ou contemplação, e só então pode
compreender espiritualmente e saborear deliciosamente o verdadeiro sentido das
Beatitudes do Cristo.
Nas seguintes páginas, ao que parece, teremos de contradizer
a tudo que acabamos de dizer: temos de falar, pensar, analisar as palavras de
Jesus – que só deviam ser vividas e saboreadas em silêncio.
Prevenimos, por isto, o leitor de que aquilo que vamos dizer
é a alma, mas apenas o corpo das Bem-aventuranças. Poremos apenas umas setas à
beira da estrada; mas estas devem ser contempladas e depois abandonadas. Se o
viandante se agarrar a um desses marcos à beira do caminho, ou até o arrancar e
levar consigo, não cumpre a mensagem secreta do marco, que é transcendente, e não
imanente. A mensagem da seta não é o aqui mas o além. O viandante deve saber
que a seta não quer dizer “aqui é a cidade X” que ele demanda, mas ela é além,
digamos daqui a 10 ou 100 km; o que a seta lhe diz é apenas: esta é a direção
certa rumo ao termo que demandas, contempla-me, pois, e ultrapassa-me – e então
terás cumprido o sentido da minha mensagem.
De modo análogo, deve o viandante, o leitor, contemplar
devidamente, compreender previamente, a direção certa indicada pelas palavras –
e depois ultrapassar todas elas e viver intimamente aquilo que leu e
compreendeu.
Tudo que está neste livro é, pois, algo preliminar; nada é
definitivo. O definitivo vem do leitor, e não do autor. O leitor é que, depois
de tomar direção certa, deve realizar o conteúdo da mensagem, dia a dia, ano
por ano, a vida inteira.
Depois de todos os ruídos, depois de ler, de ouvir, de
pensar – é que vem o grande silêncio dinâmico da realização, a vivência da
realidade.
“Quem ouve estas minhas palavras – assim encerra Jesus o
Sermão da Montanha – e as realizar, se parece com um homem sensato que
construiu sua casa sobre rocha; desabaram aguaceiros, transbordaram os rios,
sopraram os vendavais e deram de rijo contra essa casa, mas ela não caiu,
porque estava construída sobre rocha. Aquele, porém, que ouve estas minhas
palavras e não as realiza, parece-se com um homem insensato que construiu sua
casa sobre areia; desabaram aguaceiros, transbordaram os rios, sopraram os
vendavais e deram de rijo contra essa casa e ela caiu – e foi grande a sua
queda”.
A diferença entre o homem sensato e o insensato não está,
pois, em terem ouvido ou não ouvido as palavras da verdade; mas está no fato de
ambos terem ouvido e um só ter realizado a verdade das palavras em sua própria
vida.
Lê, ouve – e realiza
a verdade das Beatitudes, e serás feliz, aqui e por toda a parte.
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