A solidão amiga
Mas deixa que eu lhe diga: sua tristeza não vem da solidão.
Vem das fantasias que surgem na solidão. Lembro-me de um jovem que amava a
solidão: ficar sozinho, ler, ouvir, música... Assim, aos sábados, ele se
preparava para uma noite de solidão feliz. Mas bastava que ele se assentasse
para que as fantasias surgissem. Cenas. De um lado, amigos em festas felizes,
em meio ao falatório, os risos, a cervejinha. Aí a cena se alterava: ele, sozinho
naquela sala. Com certeza ninguém estava se lembrando dele. Naquela festa
feliz, quem se lembraria dele? E aí a tristeza entrava e ele não mais podia
curtir a sua amiga solidão. O remédio era sair, encontrar-se com a turma para
encontrar a alegria da festa. Vestia-se, saía, ia para a festa... Mas na festa
ele percebia que festas reais não são iguais às festas imaginadas. Era um
desencontro, uma impossibilidade de compartilhar as coisas da sua solidão... A
noite estava perdida.
Faço-lhe uma sugestão: leia o livro A chama de uma vela, de
Bachelard. É um dos livros mais solitários e mais bonitos que jamais li. A
chama de uma vela, por oposição às luzes das lâmpadas elétricas, é sempre
solitária. A chama de uma vela cria, ao seu redor, um círculo de claridade
mansa que se perde nas sombras. Bachelard medita diante da chama solitária de
uma vela. Ao seu redor, as sombras e o silêncio. Nenhum falatório bobo ou riso
fácil para perturbar a verdade da sua alma. Lendo o livro solitário de
Bachelard eu encontrei comunhão. Sempre encontro comunhão quando o leio. As
grandes comunhões não acontecem em meio aos risos da festa. Elas acontecem,
paradoxalmente, na ausência do outro. Quem ama sabe disso. É precisamente na
ausência que a proximidade é maior. Bachelard, ausente: eu o abracei agradecido
por ele assim me entender tão bem. Como ele observa, “parece que há em nós
cantos sombrios que toleram apenas uma luz bruxoleante. Um coração sensível
gosta de valores frágeis“. A vela solitária de Bachelard iluminou meus cantos
sombrios, fez-me ver os objetos que se escondem quando há mais gente na cena. E
ele faz uma pergunta que julgo fundamental e que proponho a você, como motivo
de meditação: “Como se comporta a Sua Solidão?“ Minha solidão? Há uma solidão
que é minha, diferente das solidões dos outros? A solidão se comporta? Se a
minha solidão se comporta, ela não é apenas uma realidade bruta e morta. Ela
tem vida.
Entre as muitas coisas profundas que Sartre disse, essa é a
que mais amo: “Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você
faz com aquilo que fizeram com você.“ Pare. Leia de novo. E pense. Você lamenta
essa maldade que a vida está fazendo com você, a solidão. Se Sartre está certo,
essa maldade pode ser o lugar onde você vai plantar o seu jardim.
Como é que a sua solidão se comporta? Ou, talvez, dando um
giro na pergunta: Como você se comporta com a sua solidão? O que é que você
está fazendo com a sua solidão? Quando você a lamenta, você está dizendo que
gostaria de se livrar dela, que ela é um sofrimento, uma doença, uma inimiga...
Aprenda isso: as coisas são os nomes que lhe damos. Se chamo minha solidão de
inimiga, ela será minha inimiga. Mas será possível chamá-la de amiga? Drummond
acha que sim:
“Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.!“
E Nietzsche, eis o que ele escreveu sobre a sua solidão:
“Ó solidão! Solidão, meu lar!... Tua voz – ela me fala com
ternura e felicidade! Não discutimos, não queixamos e muitas vezes caminhamos
juntos através de portas abertas. Pois onde quer que estás, ali as coisas são
abertas e luminosas. E até mesmo as horas caminham com pés saltitantes.
Ali as palavras e os tempos poemas de todo o ser se abrem
diante de mim. Ali todo ser deseja transformar-se em palavra, e toda mudança pede
para aprender de mim a falar.“
Rainer Maria Rilke, um dos poetas mais solitários e densos
que conheço, disse o seguinte: “As obras de arte são de uma solidão infinita.“
É na solidão que elas são geradas
E me lembro também de Cecília Meireles, tão lindamente
descrita por Drummond:
“...Não me parecia criatura inquestionavelmente real; e por
mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por
gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me a impressão de que ela não
estava onde nós a víamos... Distância, exílio e viagem transpareciam no seu
sorriso benevolente? Por onde erraria a verdadeira Cecília...“
Sim, lá estava ela delicadamente entre os outros,
participando de um jogo de relações gregárias que a delicadeza a obrigava a
jogar. Mas a verdadeira Cecília estava longe, muito longe, num lugar onde ela
estava irremediavelmente sozinha.
-Rubem Alves-
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