Cora Coralina - Venho do século passado e trago comigo todas as idades
a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida
e não desistir da
luta,
recomeçar na derrota,
renunciar a palavras
e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos
e ser otimista.
Creio na força imanente
que vai gerando a família
humana,
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana,
na superação dos erros
e angústias do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher tudo fácil.
Antes acreditar do que duvidar"
- Cora Coralina, in "Ofertas de Aninha", no livro
Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha, 6ª ed. Global Editora
(1996).
Cora Coralina (Aninha) |
Em 25 de novembro de 1911 deixa
Goiás indo morar no interior de São Paulo. Volta para Goiás em 1954, depois de
45 anos.
“Sai desta cidade
em 25 de novembro de 1911 e voltei
em 22 de março de 1956. Deixei
filhos, nora, genros, netos e bisnetos. A força da terra, das raízes que me
chamavam eram mais fortes e sobrepôs a todos esses afetos familiares.
Quando eu voltei, não tinha intenção de permanecer, tinha a intenção
de matar saudades velhas e carregar saudades
novas.”
- Cora Coralina, no Especial Literatura, TVE,
1985.
Cora Coralina era chamada
Aninha da Ponte da Lapa. Tendo apenas instrução primária e sendo doceira
de profissão.
Cora Coralina não se filiou a
nenhuma corrente literária. Com um estilo pessoal, foi poeta e uma grande
contadora de histórias e coisas de sua terra. O cotidiano, os causos, a velha
Goiás, as inquietações humanas são temas constantes em sua obra, considerada por
vários autores um registro histórico-social do século XX.
Faleceu em 10 abril de 1985 em
Goiânia.
“Quando
escrevo, escrevo por um impulso interior que me vem do insondável que cada um de
nós trás consigo. Mas uma coisa eu digo a você: ontem nós falamos nas pessoas
que ainda estão voltadas para o passado. E eu digo a você: não há ninguém que
não faça sua volta ao passado ao escrever. Nós todos fazemos. Nós todos
pertencemos ao passado. Todos nós. Queira ou não queira. É de uma forma
instintiva. Nós todos estamos ligados muito mais aos nossos avós do que aos
nossos pais.”
-
In: Cora Política Coralina, 1984.
CRONOLOGIA VIDA E
OBRA DE CORA CORALINA
Cora Coralina, jovem. |
1905 - Passa a freqüentar
os saraus literários realizados na residência de um advogado da cidade, em que,
sem revelar o nome do autor, lê publicamente seus
poemas.
1907 - Tem pela primeira
vez seus poemas publicados no jornal O Paiz. Trabalha como redatora do jornal A
Rosa.
1910 - Publica seus primeiros poemas no jornal O
Paiz e pela primeira vez utiliza pseudônimo Cora Coralina, que adota em toda sua
carreira literária. Publica o seu primeiro conto "Tragédia na Roça" no
Anuário Histórico Geográfico e Descritivo do Estado de Goiás .
1911 - Grávida, sai da
cidade com Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas, que havia sido
designado delegado de polícia da Vila de Goiás nesse
ano.
1912 - Instalam-se na
cidade de Jaboticabal, interior de São Paulo.
1914 - Colabora no
Jornal O Democrata, em que seu marido trabalha como redator. Em seus
artigos faz reivindicações em favor dos pobres e idosos da cidade. Defende a
criação da Escola de Agronomia de Jaboticabal.
1921 - Publica no jornal
O Estado de S. Paulo o artigo "Idéias e Comemorações", elogiado pelo
escritor Monteiro Lobato (1882 - 1948).
1923 - O casal adquire uma
chácara onde a poeta passa a cultivar e comercializar flores. Colabora no
jornal A Informação Goiana.
1925 - Viaja com o marido
para São Paulo e oficializam o casamento. Em lua-de-mel, vão para o Rio
de Janeiro.
1926 - Muda-se com a
família para São Paulo.
1932 - Apóia a Revolução
Constitucionalista e colabora no jornal O Estado de S.
Paulo.
1934 - Morre seu marido e
para sustentar a família abre uma pensão.
Cora Coralina |
1937 - Muda-se para
Penápolis, São Paulo, onde abre uma casa de retalhos e colabora no jornal
O Penapolense.
1940 - Instala-se em
Andradina, São Paulo, e inaugura uma casa de tecidos. Adquire uma chácara
na vila Alfredo de Castilho e se torna lavradora. Pouco tempo depois
adquire dois novos sítios, no primeiro passa a produzir algodão e o segundo
destina ao aluguel para o descanso das boiadas que, vindas de Mato Grosso, vão
para o Matadouro de Araçatuba. Colabora no periódico O Jornal da
Região.
1954 - Vende seus bens de
São Paulo para seu filho e retorna para a vila de Goiás, onde produz
doces.
1959 - Conhece o advogado
Tarquínio de Oliveira, que a estimula a publicar seus poemas por uma
editora paulista, então aprende datilografia e passa a limpo suas
poesias.
1959 - Em companhia de
Tarquínio de Oliveira encontra-se com o escritor Antônio Olavo
Pereira (1913), irmão de José Olympio e administrador de sua editora
em São Paulo.
1976 - É homenageada
pelo Grêmio Lítero-Musical Carlos Gomes, sediado em
Goiânia.
1979 - Recebe carta do
poeta Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987) enaltecendo-a como uma das
grandes poetas nacionais. Os dois poetas passam a se corresponder
freqüentemente.
1980 - No Rio de Janeiro, é
homenageada como uma das dez mulheres do ano nas letras nacionais.
Drummond publica um artigo elogiando seus poemas no Caderno B do Jornal
do Brasil.
1981 - Como tributo a
seu trabalho literário recebe o Troféu Jaburu, doado pelo Conselho de
Cultura do Estado de Goiás.
1982 - É reverenciada, em
São Paulo, no 1º Festival Mulheres nas Artes. E participa do recital em sua
homenagem promovido pela Fundação Ação Social do Palácio do Governo de
Goiás.
Cora Coralina |
1984 - Torna-se membro
da Academia Goiana de Letras. Recebe o grande prêmio de crítica da
Associação Paulista de Crítica de Arte - APCA e o Troféu Juca Pato da
União Brasileira de Escritores - UBE.É reconhecida como Símbolo
Brasileiro do Ano Internacional da
Mulher Trabalhadora pela FAO.
1985 - Morre no dia 10
de abril, em Goiânia, e é enterrada na cidade de Goiás, onde é fundada a
Casa de Cora Coralina, instituição que zela pela preservação de sua
memória.
"A estrada da vida é uma reta marcada de encruzilhadas.
Caminhos certos e errados, encontros e desencontros
do começo ao fim.
Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina."
- Cora Coralina, "Exaltação a Aninha", Vintém de Cobre: meias
confissões de Aninha.
OBRAS PUBLICADAS DE CORA CORALINA - PRIMEIRAS EDIÇÕES
Poemas de Cora Coralina |
CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1965.
_______ .
Meu Livro de Cordel. Livraria e Editora Cultura Goiana,
1976, p. 93.
_______ . Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. UFG Editora, 1983, p. 195.
_______ . O tesouro da Casa Velha. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 1996.
_______ . Vintém de Cobre: Meias Confissões de Aninha. UFG Editora, 1983, p. 195.
_______ . O tesouro da Casa Velha. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 1996.
_______ . Vila Boa de
Goyáz. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 2001.
Infantil e juvenil
CORALINA, Cora. Os Meninos Verdes. São Paulo: Global, 1986.
_______ . A Moeda de Ouro que um Pato Engoliu. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 1999.
_______ . O Prato Azul-Pombinho. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 2002.
"Entre pedras que me esmagavam levantei a pedra rude dos meus versos."
- Cora Coralina, in "Das pedras", Meu livro de cordel.
1962 - Cidadã
Andradinense – Andradina-SP.
1973 – Premio de
Contribuição à cultura goiana – Literatura – UBE. Goiânia-GO.
1976 - Intelectual do Ano - Grêmio Litero Teatral Carlos Gomes, Goiânia-GO.
CORA CORALINA E A SEMANA DE 22
CORALINA, Cora. Os Meninos Verdes. São Paulo: Global, 1986.
_______ . A Moeda de Ouro que um Pato Engoliu. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 1999.
_______ . O Prato Azul-Pombinho. [publicação póstuma]. São Paulo: Global, 2002.
"Entre pedras que me esmagavam levantei a pedra rude dos meus versos."
- Cora Coralina, in "Das pedras", Meu livro de cordel.
CORA CORALINA -
RECONHECIMENTO – HOMENAGENS, COMENDAS E PRÊMIOS.
1970 - Membro da
Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás,
Goiânia-GO.
Cora Coralina |
1976 - Intelectual do Ano - Grêmio Litero Teatral Carlos Gomes, Goiânia-GO.
1977 - Membro da
Arcádia Goiana de Cultura, Goiânia-GO.
1977 - Medalha Ana
Néri – Sociedade Brasileira de Educação e Integração – São
Paulo-SP.
1978 - Comenda do Mérito
Anhanguera – Governo do Estado de Goiás, Goiânia-GO.
1978 - Medalha do
Sesquicentenário da Fundação de Jaboticabal –
Jaboticabal-SP.
1980 - Dez Mulheres do
Ano, Conselho Nacional de Mulheres do Brasil, Rio de
Janeiro-RJ.
1981 - Recebe o Troféu
Jaburu, doado pelo Conselho de Cultura do Estado de Goiás, pelo seu trabalho
literário.
____
. Medalha Veiga Valle, Organização Vilaboense de Artes e Tradições,
Cidade de Goiás-GO.
____
. Expressão da Cultura, Academia Goiana de Letras e Fundação Projeto
Rondon, Goiânia-GO.
1982 - Prêmio Fernando Chinaglia – UBE – Rio de Janeiro.
1982 - Prêmio Fernando Chinaglia – UBE – Rio de Janeiro.
____
. Sócio Honorário da Casa do Poeta Brasileiro,
Santos-SP.
____
. Medalha Tiradentes, Governo do Estado de Goiás,
Goiânia-GO.
____
. Medalha Antônio Joaquim de Moura Andrade, Câmara Municipal de
Andradina, Andradina-SP e Serviço Social do Comércio, São
Paulo-SP.
1983 - Recebe o título
de doutora honoris causa, conferido pela Universidade Federal de
Goiás.
____
. Mulher do Ano, Grêmio Litero Teatral Carlos Gomes,
Goiânia-GO.
____
. É agraciada com a Comenda da Ordem do Mérito do Trabalho, conferida
pelo presidente da República, João Baptista Figueiredo (1919 - 1999), por
seus méritos na promoção da cultura goiana.
1984 - Recebe o Troféu Juca Pato, da União Brasileira de
Escritores (UBE) e Folha de São Paulo, São Paulo.
Cora Coralina |
____
. É reconhecida como Símbolo Brasileiro do Ano Internacional da Mulher
Trabalhadora pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e
Alimentação).
____
. Cidadã Jaboticabalense, Jaboticabal-SP.
____
. Cidadã Goianiense, Goiânia-GO.
____
. Grande Prêmio da Crítica – Associação Paulista de Críticos de Arte, São
Paulo-SP.
____
. Membro da Academia Goiana de Letras,
Goiânia-GO.
1985 - Personalidade do
Ano - Literatura, Rotary Club de São Paulo, São Paulo-SP.
Cora Coralina, Lezio Junior. |
CORA CORALINA E A SEMANA DE 22
“Eu só me libertei
da dificuldade poética depois do modernismo de 22, mas não acompanhei o
movimento. Não sei como – não posso explicar como - me achei dentro daquela
mudança. Em primeiro lugar, poesia para mim é comunicação; em segundo lugar é
invenção, porque só o gênio cria. Hoje nós temos que achar a poesia na realidade
da vida e a vida toda é poesia.
Porque onde há
vida, há poesia. Poesia para mim é um ato visceral. É um impulso que vem de
dentro e se eu não obedecê-lo me sinto angustiada. (...) Todo o poeta é meu
preferido. Gosto dos poetas de 22. Mas para mim o fundamental é a poesia que
busque inspiração na realidade. Não suporto os poetas do imaginário que fazem
sua arte do caracol das palavras.”
- Cora Coralina, Revista Análise, 1984, p.
10-11.
A MÁQUINA DE
ESCREVER
A velha máquina de escrever... |
- Tarquínio J. B. de Oliveira –
escritor, S. Paulo, 15 julho 60.
“O
grande livro que sempre me valeu e que aconselho aos jovens, um dicionário. Ele
é o pai, é tio, é avô, é amigo e é um mestre. Ensina, ajuda, corrige, melhora,
protege. Dá origem da gramática e o antigo das palavras. A pronúncia correta, a
vulgar e a gíria. Incorporou ao
vocabulário todos os galicismos, antes condenados. Absolveu o erro e ressalvou o
uso. Assimilou a afirmação de um grande escritor: é o povo que faz a língua.
Outro escritor: a língua é viva e móvel. Os gramáticos a querem estática,
solene, rígida. Só o povo a faz renovada e corrente sem por isso escrever
mal.”
- Cora Coralina, in "Voltei", do
livro 'Vintém de Cobre: meias confissões de Aninha' - 6ª ed. Global Editora (1996).
"Minha querida
amiga Cora Coralina: Seu "Vintém de Cobre" é, para mim, moeda de ouro, e de um
ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e
comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de experiência humana, que
sensibilidade especial e que lirismo identificado com as fontes da vida! Aninha
hoje não nos pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil e
amamos a poesia ( ...)."
- Carlos Drummond de Andrade.
“Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha
da vida,
removendo pedras e plantando
flores.”
A poetisa e contista Anna Lins dos Guimarães Peixoto
Bretas, a Cora Coralina, entre os frequentadores do Gabinete Literário Goiano |
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE E A PROJEÇÃO NACIONAL DE CORA CORALINA
A repercussão nacional veio com a
publicação da segunda edição de Poemas dos Becos de Goiás, em 1978, pela
Editora da Universidade Federal de Goiás. Um dos exemplares foi encaminhado ao
poeta Carlos Drummond de Andrade, que, não possuindo referências sobre a
poetisa, enviou uma carta* à universidade:
“Cora Coralina.
Não tenho o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele
as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de
graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu
lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades
de Minas, tão irmã do teu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no
coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina. Todo o carinho, toda a admiração
do seu.”
- Carlos Drummond de Andrade, Rio de
Janeiro, 14 de julho de 1979.
Aninha,
respondeu:
“Carlos Drummond
de Andrade. Meu amigo, meu Mestre. Com alguma demora no recebimento de sua
Mensagem e maior da minha parte, vai aqui na pobreza deste papel de que só vale
o branco, meu agradecimento àquele que de longe e do alto atentou para a pequena
escriba, sem lauréis e sem louros, sem referências a mencionar. Sua palavra,
espontânea e amiga, fraterna veio como uma vertente de água cristalina e azul
para a sede
de quem fez longa
e dura caminhada ao longo da vida. Abençoado seja o homem culto que entrega ao
vento palavras novas que tão bem ressoam no coração de quem tão pouco as tem
ouvido. Despojada de prêmios e de láureas caminha na vida como o trabalhador que
bem fez rude tarefa, sozinho, sem estímulos e no fim contempla tranqüilo e ainda
confiante a
tulha vazia. Meu
Mestre. Meu Irmão. Que mais acrescentar? Eu sou aquela menina despenteada e
descalça da Ponte da Lapa. Eu sou Aninha.”
- Cora Coralina. Cidade de Goiás, 02
de setembro de 1979.
Essa carta foi à chancela para sua
projeção nacional, consolidada com a Crônica “Cora Coralina, de Goiás”, publicada no Jornal
do Brasil, transcrita na integra:
Crônica "Cora Coralina, de Goiás - Drummond - JB. |
“Cora Coralina, de Goiás. Este nome não inventei, existe
mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. Cora Coralina, tão
gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas
entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona Janaina
moderna. Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais que o
Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do
Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua
invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. Na estrada
que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os
miseráveis de hoje.
O verso é simples, mas abrange a
realidade vária. Escutemos: “Vive dentro de mim/uma cabocla velha/de mau
olhado,/acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de
mim/a lavadeira do Rio Vermelho. Seu cheiro gostoso d’água e sabão”.
“Vive dentro de mim/a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute
bem-feito”. “Vive dentro de mim/a mulher proletária./Bem linguaruda,/
desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim/a mulher da vida./Minha
irmãzinha.../tão desprezada,/tão murmurada...” Todas as vidas. E Cora Coralina as celebra todas com o
mesmo sentimento de quem abençoa a vida. Ela se coloca junto aos humildes,
defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua consciência
humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve o Ode
às Muletas como a Oração do Milho. No primeiro texto, foi a experiência pessoal
que a levou a meditar na beleza intrínseca desse objeto (“Leves e verticais.
Jamais sofisticadas./Seguras nos seus calços/de borracha escura. Nenhum enfeite
ou sortilégio”). No segundo poema, o dom de aproximar e transfigurar as
coisas atribui ao milho estas palavras: “Sou o canto festivo dos galos na glória
do dia que amanhece./Sou o cocho abastecido donde rumina o gado./Sou a pobreza
vegetal agradecida a Vós, Senhor”. Assim é Cora Coralina: um ser geral,
“coração inumerável”, oferecido a estes seres que são outros tantos
motivos de sua poesia: o menor abandonado, o pequeno delinqüente, o presidiário,
a mulher-da-vida. Voltando-se para o cenário goiano, tem poemas sobre a enxada,
o pouso de boiadas, o trem de gado, os becos e sobrados, o prato azul-pombinho,
último restante de majestoso aparelho de 92 peças, orgulho extinto da família.
Este prato faz jus a referência especial, tamanha a sua ligação com os usos
brasileiros tradicionais, como o rito da devolução: “Às vezes, ia de
empréstimo/ à casa da boa Tia Nhorita./E era certo no centro da mesa/de
aniversário, com sua montanha/de empadas bem tostadas/No dia seguinte,
voltava,/conduzido por um portador/que era sempre o Abdenago, preto de valor,/de
alta e mútua Confiança./Voltava com muito-obrigados/e, melhor cheinho/de doces e
salgados./Tornava a relíquia para o
relicário...”
Cora Coralina |
Tinha
medo de falar. Lembra com amargura essas carências, esquecendo-se de que a
tristeza infantil não lhe impediu, antes lhe terá reparado a percepção solidária
das dores humanas, que o seu verso consegue exprimir tão vivamente em forma
antes artesanal do que acadêmica. Assim é Cora Coralina, repito: mulher
extraordinária, diamante goiano cintilado na solidão e que pode ser contemplado
em sua pureza no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não estou
fazendo comercial de editora, em época de festas. A obra foi publicada pela
Universidade Federal de Goiás. Se há livros comovedores, este é um
deles.
Cora
Coralina, pouco conhecida dos meios literários fora de sua terra, passou
recentemente pelo Rio de Janeiro, onde foi homenageada pelo Conselho Nacional de
Mulheres do Brasil, como uma das 10 mulheres que se destacaram durante o ano. Eu
gostaria que a homenagem fosse também dos homens. Já é tempo de nos conhecermos
uns aos outros sem estabelecer critérios discriminativos ou simplesmente
classificatórios. Cora Coralina, um admirável brasileiro. Ela mesmo se define:
“Mulher sertaneja, livre, turbulenta, cultivadamente rude. Inserida na gleba.
Mulher terra. Nos meus reservatórios secretos um vago sentido de analfabetismo”.
Opõe à morte “aleluias festivas e os sinos alegres da Ressurreição. Doceira fui
e gosto de ter sido. Mulher operária”. Cora Coralina: gosto muito deste
nome, que me invoca, me bouleversa, me hipnotiza, como no verso de
Bandeira.”
- Carlos Drummond de Andrade. Jornal do Brasil, cad.
B, 27-12-80.
Ambos passaram a se corresponder
nos anos seguintes. E Drummond, continuou promovendo a obra de Cora
Coralina.
"Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai
cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de
foice
e o peso do machado.
Cheiro de currais e gosto de
terra.
(...)"
- Cora Coralina, In. Poema "A gleba me
transfigura".
CORA
CORALINA E JORGE AMADO - ENTRE ENCONTROS E CORRESPONDÊNCIAS
Cora Coralina e Jorge Amado na Casa Velha da Ponte. |
Quero crer que
Cora Brêtas, de Goiânia, e Cora Coralina de Jesus, [confundindo-a com a
escritora Leodegária de Jesus] de Goyaz Velho, sejam a mesma pessoa. É certo ou
estou em erro? Mande-me dizer.
- Jorge Amado
Resposta de Cora:
Jorge Amado. Em
hora aprazível tem chegado a Goiás suas mensagens, Zélia presente e euos
agradeço de cór. Cora Coralina de Jesus, do Coração de Jesus, de Jesus Maria e
José, de São Paulo e de São Pedro, do Menino Jesus de Praga ou não, de todos os
santos milagrosos. (...) e Amado filho muito nobre de Pirangi, da boa terra de
São Jorge. (...) Para o endereço apenas Cora Coralina que a cidade é mesmo uma
coisinha e eu não tenho xará. (...) Vai esta com um volume de meus escritinhos.
É o que posso oferecer, e o faço com singeleza e algum acanhamento. Você que é
escritor, revestido, condecorado e urbano, passe os olhos e releve. (...) Jorge
meu irmão rico, saibam você e a Zélia de que tem nesta Cidade de Goiás uma
contadeira de verdades e mentiras que os quer bem de todo o
coração.
- Cora
Coralina
Após esse contato, Cora
Coralina e Jorge Amado, passaram a se corresponder. Essa
correspondência é inédita, algumas foram publicadas recentemente em “A
economia simbólica dos Acervos Literários: Itinerários de Cora Coralina, Hilda
Hilst e Ana Cristina César. (Tese de Doutorado) Brasília: UnB, jun. 2011, de
Clóvis Carvalho Britto”.
"A vida é sempre boa. Saber viver é a grande sabedoria e
nós todos temos a faculdade de fazê-la sempre melhor. Além da vida material que
está a nossa volta, temos também a nossa vida interior, mais válida que a
material. Depende de nós fazê-la melhor."
- Cora Coralina, Especial
Literatura, n.° 14, TVE, 29/1/1985.
CORA
CORALINA, A DOCEIRA
DA CASA VELHA DA PONTE DO RIO VERMELHO DE GOYAZ VELHO
Cora Coralina, a doceira |
“Sou mais doceira e
cozinheira
do que escritora, sendo a
culinária
a mais nobre de todas as
Artes:
objetiva, concreta, jamais
abstrata
a que está ligada à vida
e
à saúde humana.”
- Cora Coralina, trecho do poema: Quem É
Você?
“Faz tempo,
queria contar para sua ternura,
essas coisas miúdas que nós
entendemos.
Ah! Meu amigo e
confrade...
As rolinhas... as últimas, fogo-pagou, cantaram a
cantiga
da despedida no telhado negro da Velha
Casa.
Cantaram em nostalgia toda uma certa manhã
passada.
Olhei. Eram cinco, as
derradeiras.
Levantaram vôo e se foram para
sempre.”
- Cora Coralina, 1983.
- Cora Coralina, 1983.
Cora Coralina, TV Integração canal 11.
com depoimentos da poetisa Cora Coralina.
O
RETORNO
Cora Coralina |
“Sim, foi naquele
meio, afastada de tudo o que me prendia, sozinha, longe da vida de meus filhos
(porque uma mãe quando mora com os filhos vive a vida de todo o mundo, menos a
dela). Quando eu senti uma necessidade imprecisa, obscura de me por de longe, eu
tinha qualquer coisa que me forçava a isso. Em Goiás, vamos dizer
assim,
abriram-se as
portas do pensamento e escrevi o primeiro livro publicado.”
- Cora Coralina, In: Araújo, 1977.
- Cora Coralina, In: Araújo, 1977.
“Nós temos dentro
de nós um porãozinho. Ele abre e fecha
automaticamente. E
as coisas caíram dentro do meu porão. E o
porão
se fechou. E ficou
fechado durante quarenta e cinco anos. O tempo
todo que eu estive
fora da minha cidade. E eu senti a necessidade
de
abrir esse porão
voltando. Lá não. Tinha que voltar para abrir o
porão.
Aqui é que o meu
porão tina que ser aberto soltando as coisas
de
dentro. Soltando o
passado de dentro.”
- Cora Coralina
- Cora Coralina
A
REVOLTA
“Meus amigos me
esqueceram. As revistas que apareceram em Goiânia, jamais me pediram uma crônica
sequer. Eu poderia ter colaborado e muito. Havia muita coisa a ser escrita
dentro da história de Goiás. Preferiram encomendar crônicas de fora, Eneida e
outros nomes, que falavam da Guanabara. Eu fui ficando de lado, angustiada,
aborrecida, frustrada. Por isso dediquei-me de corpo inteiro a fabricação
de doces, sem deixar de escrever meus contos e poemas. É uma espécie de revolta
que tenho comigo. Escrevi bastante naquela época, mas nunca bati na porta de
ninguém para a publicação de meus trabalhos. (...) Ai está o motivo de meu apego
aos doces, é uma réplica a esse alheamento que os jornais fizeram da minha
pessoa literária.”
- Cora Coralina
- Cora Coralina
Cora Coralina |
Cora Coralina reescreve
Goiás, promovendo uma arqueologia do passado através das imagens que construiu.
Seu ato de registrar, através da escrita, cenários e personagens historicamente
silenciados, constituiu em uma forma de perenização e resistência.
"Alguém
deve rever, escrever e assinar os autos do Passado
antes que o Tempo passe tudo a
raso.
É o que procuro fazer, para a geração nova,
sempre
atenta e enlevada nas estórias, lendas, tradições,
sociologia
e folclore de nossa terra.
Para a gente moça, pois, escrevi este livro de
estórias.
Sei que serei lida e entendida."
- Cora Coralina, "Ao Leitor", 1980, p. 39.
- Cora Coralina, "Ao Leitor", 1980, p. 39.
GOYAZ VELHO
A poetisa deixa transparecer sua
opção no antológico poema Minha Cidade:
[…]
Eu sou aquela
menina feia da
ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
Eu sou aquela
mulher,
que ficou velha,
esquecida,
nos teus larguinhos
e nos teus becos
tristes,
contando estórias,
fazendo
adivinhação.
Cantando teu
passado.
Cantando teu futuro.
Eu sou aquele teu
muro [...]
encostadas
cochichando umas
com as outras.
Eu sou a ramada
dessas árvores […]
Eu sou o caule
dessas trepadeiras […]
Minha vida,
meus sentidos,
minha estética,
todas as vibrações
de minha
sensibilidade de
mulher
têm, aqui, suas
raízes.
Eu sou a menina
feia
da ponte da Lapa.
Eu sou Aninha.
- Cora Coralina, in "Minha
Cidade", 1980,
p. 47-49.
Na verdade, Cora regressou, sem o
intuito de permanecer. Dois foram os motivos de seu retorno: lutar pela compra
de sua casa natal; e iniciar uma espécie de “pesquisa de campo”, uma coleta de
dados que orientariam a elaboração dos poemas de seu livro tão almejado. Este
segundo fato, pouco divulgado, é fundamental para compreendermos o processo
criativo de Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. Não por acaso o
jornal Cidade de Goiás, publicou em 8 de abril de 1956 a seguinte nota:
“Em visita a esta cidade encontra-se entre nós a Sra. D. Ana Lins dos Guimarães
Peixoto Bretãs (...). Inteligência viva e palestra fluente, Cora Coralina esta
colhendo dados para trabalho seu sobre.
"Eu brincava,
rodava, virava roda,
e o antigo mandrião se enchia
e vento balão.
Aninha cantava, desentoada,
desafinada,
boba que era.
Meu mandrião, vento balão,
roda pião, vintém na mão."
- Cora
Coralina, In. Vintém de Cobre.
- Marietta Telles Machado.
POEMAS ESCOLHIDOS DE CORA
CORALINA
Meu destino
Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes –
íamos sozinhos por estradas
diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela
vida...
- Cora Coralina
- Cora Coralina
Mascarados
Saiu o Semeador
a semear
Semeou o dia
todo
e a noite o
apanhou ainda
com as mãos
cheias de sementes.
Ele semeava
tranqüilo
sem pensar na
colheita
porque muito
tinha colhido
do que outros
semearam.
Jovem, seja
você esse semeador
Semeia com
otimismo
Semeia com
idealismo
as sementes
vivas
da Paz e da
Justiça.
-
Cora Coralina, no Caderno "Folha Ilustrada", São Paulo: Folha de São Paulo,
edição de 04/07/2001.
[...] O
passado...
Homens sem
pressa,
talvez
cansados,
descem com
leva
madeirões
pesados,
lavrados por
escravos
em rudes
simetrias,
do tempo das
acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na
calçada.
Passantes
cautelosos
desviam-se com
prudência.
Que importa a eles
o sobrado?
Gente que passa
indiferente,
olha de
longe,
na dobra das
esquinas,
as traves que
despencam.
-Que vale para
eles o sobrado?
Quem vê nas velhas
sacadas
de ferro
forjado
as sombras
debruçadas?
Quem é que está
ouvindo
o clamor, o adeus,
o chamado?...
Que importa a
marca dos retratos na parede?
Que importam as
salas destelhadas,
e o pudor das
alcovas devassadas...
Que
importam?
E vão fugindo do
sobrado,
aos
poucos,
os quadros do
Passado.
-
Cora Coralina
Velho
Estás morto, estás velho, estás cansado!
Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de
lágrimas pungidas
Ei-las, as
rugas, as indefinidas
Noites do ser
vencido e fatigado.
volve-te o
crepúsculo gelado
Que vai soturno
amortalhando as vidas
Ante o repouso
em músicas gemidas
No fundo
coração dilacerado.
A cabeça
pendida de fadiga,
Sentes a morte
taciturna e amiga,
Que os teus
nervosos círculos governa.
Estás velho
estás morto! Ó dor, delírio,
Alma
despedaçada de martírio
Ó desespero da
desgraça eterna.
- Cora Coralina
- Cora Coralina
Pedras
Os morros cantam para meus sentidos
Os morros cantam para meus sentidos
a música dos
vegetais
que se movem ao
vento.
As pedras
imóveis me enviam
uma benção
ancestral.
Debaixo da
minha janela
se estende a
pedra-mãe.
Que mãos
calejadas
e imensas mãos
sofridas de escravos
a teriam posto
ali,
para
sempre?
Pedras sagradas
da minha cidade,
nossa íntima
comunicação.
Lavada pelas
chuvas,
queimada pelo
sol,
bela laje
velhíssima e morena.
Eu a desejaria
sobre meu túmulo
e no silêncio
da morte,
você, uma pedra
viva, e eu,
teríamos uma
fala
do começo das
eras.
- Cora Coralina, in. "Villa Boa de Goiaz", São Paulo:
Global Editora, 2001, pág. 93.
O chamado das Pedras
A estrada está deserta.
Vou caminhando sozinha.
Ninguém me espera no
caminho.
Ninguém acende a luz.
A velha candeia de azeite
de lá muito se apagou.
A longa caminhada.
A longa noite escura.
Ninguém me estende a mão.
E as mãos atiram pedras.
Sozinha...
Errada a estrada.
No frio, no escuro, no
abandono.
Tateio em volta e procuro a
luz.
Meus olhos estão
fechados.
Meus olhos estão cegos.
Vêm do passado.
Num bramido de dor.
Num espasmo de agonia
Ouço um vagido de
criança.
É meu filho que acaba de
nascer.
Sozinha...
Na estrada deserta,
Sempre a procurar
o perdido tempo que ficou pra
trás.
Do perdido tempo.
Do passado tempo
escuto a voz das pedras:
Volta...Volta...Volta...
E os morros abriam para
mim
Imensos braços vegetais.
E os sinos das igrejas
Que ouvia na distância
Diziam: Vem... Vem...
Vem...
E as rolinhas fogo-pagou
Das velhas cumeeiras:
Porque não voltou...
Porque não voltou...
E a água do rio que
corria
Chamava...chamava...
Vestida de cabelos
brancos
Voltei sozinha à velha casa
deserta.
- Cora Coralina, do "Meu Livro de Cordel", 8°ed.,
1998.
Meu
Epitáfio
Morta... serei
árvore
Serei tronco,
serei fronde
E minhas
raízes
Enlaçadas às
pedras de meu berço
são as cordas
que brotam de uma lira.
Enfeitei de
folhas verdes
A pedra de meu
túmulo
num
simbolismo
de vida
vegetal.
Não morre
aquele
que deixou na
terra
a melodia de
seu cântico
na música de
seus versos.
-
Cora Coralina, do "Meu Livro de Cordel", 1998.
Assim eu vejo a
vida
A vida tem duas
faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu
legado
Saber viver é a grande
sabedoria
Que eu possa
dignificar
Minha condição de
mulher,
Aceitar suas
limitações
E me fazer pedra de
segurança
dos valores que vão
desmoronando.
Nasci em tempos
rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
-
Cora Coralina, [O
poema acima, inédito em livro], foi publicado pelo jornal "Folha de São Paulo" —
caderno "Folha Ilustrada", edição de 04/07/2001.
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