PROSA - CRÔNICA
FELICIDADE
Mauro
Martins Santos
(...) Para nós as palavras são a mesma
coisa que as cores da paleta são para o pintor.
Existem incontáveis delas, e surgem sempre
novas, mas as boas palavras, as verdadeiras, são menos numerosas, e em setenta
anos de vida não vi surgir nenhuma nova. (...) Entre as palavras existem para
cada falante as prediletas e as estranhas, preferidas e evitadas, cotidianas
que se usam mil vezes sem temer o desgaste (...) só pronunciamos ou escrevemos
com cuidado e reflexão, como objetos raros: fazendo as escolhas que
correspondem a essa sua solenidade.
Entre elas está para mim a palavra Felicidade. [Hermann Hesse]
Penso às
vezes que a maioria de nós empenharia todas suas forças, jogaria todas suas cartas para ter o lampejo
brilhante da tão sonhada Felicidade. Nos dias frios, solitários, ruas vazias e
o tom cinza do céu sem o sol reconfortante é a morada da tristeza em nós.
O vazio da
vida se torna evidente, tentamos de todas as formas recolher em nosso entorno
algo que nos alimente a esperança, traga-nos alegria. Tomamos de um livro,
percorremos as linhas e as letras e não formamos juízo do que lemos, o
pensamento divaga e não se firma no objeto que oferecemos a nós mesmos.
Eu
particularmente na juventude e até a maturidade, já cheguei a pensar que se
tivesse muito dinheiro não compraria a Felicidade que é abstrata, mas compraria
objetos de meus sonhos, que me fariam feliz.
Compraria
uma propriedade nas montanhas - já que adoro montanhas - outra na praia para os
membros da família que adoram o mar, viajaria muito, conheceria muitos países e
as esquinas do mundo. Buscaria todo entretenimento possível, buscaria sempre os
melhores restaurantes, teria todas as mulheres que fariam minha cabeça, enfim
nada de trabalho, só diversão.
Mas era
jovem, muito jovem, para ter visto a crueza da realidade e as fronteiras com o
território da verdade. Ainda não havia
percebido, vislumbrado e sentido que a felicidade é feita de momentos; sim, não
há filosofia nesta afirmação, mas nua e crua realidade.
A Felicidade,
tão cobiçada rainha, é uma hóspede que visita o hotel da argamassa de nós
mesmos. Temperamental por natureza e inconstante por conformação, muito embora
seja uma nossa imensa querida, e, adorada amiga amante...
Já se disse
que sempre a pomos onde nós queremos e nunca a pomos onde nós estamos. Ela é
uma pluma muito leve, um lampejar volátil e fugaz, por ser um estado de
espírito sumamente impossível de se medir sua intensidade, tamanho e duração.
Quando ela resolve ir embora ou mesmo não ter ficado, arruma ou pega suas malas
e se vai. Para onde? Ninguém sabe. Quando volta? Daqui a muito, muito tempo, ou
imediatamente está de retorno.
Isto tudo
porque quem é o inconstante, fugaz e fraco gerador de condições propícias para
cativar a Felicidade, sou eu, você, somos nós mesmos. Não sustentamos com
tenacidade o campo de força de atração, titubeamos e a deixamos ir embora para
depois chorar.
Raimundo
Corrêa em sua poética escreveu:
Aparências
Se pudesse o espírito que chora/Ver através da máscara da face,/Quanta
gente, talvez que inveja/Agora nos causa, então piedade nos causasse.
Razão pela qual muitas vezes,
julgamos feliz quem mora em uma cidade litorânea, por ter todos os dias o mar e
a praia a seus pés... Perguntei a uma jovem e bonita mulher funcionária do
restaurante de um hotel: - Você vai sempre à praia que está a apenas um
quarteirão daqui não vai? Ela me respondeu: - Faz cinco anos que não piso na
praia, eu tenho quatro crianças, que crio sozinha, tive que abandonar o marido
por motivos de prisões dele por drogas, bebidas e mulheres, e por me espancar,
moro a nove quilômetros fora da cidade que percorro de ônibus ou a pé quando
não tenho dinheiro para a passagem... Mudei de assunto e a abençoei
espiritualmente, indo para a mesa almoçar e meditar.
Por esta razão é que a felicidade
passa por nós por breves momentos. Eu feliz na praia, de férias sendo servido
por aquela moça, que nem em sonho imaginava sua vida real.
Fiquei infeliz. Até que outro
momento, outra brisa me trouxesse um pouco de possível felicidade.
Então quando jovem se pensava daquela
forma, mais à frente com a chegada dos anos, fui vendo com a própria vida que
nem tudo é como parece. Raimundo Corrêa foi citado e escrito, para sintetizar o
muito que poderia ser dito sobre a Felicidade e as aparências que nos levam ao
erro de ações, omissões e pensamentos.
Enquanto procuramos a felicidade além
dos horizontes, pode ocorrer de a perdermos dentro de nós mesmos.
Cheguei à definitiva conclusão, que
não quero mais os sonhos da juventude, e no fundo como era eu mesmo, nunca quis
de verdade, apenas me iludia - se tivesse um iate ou um grande barco há muito o
teria vendido, visto que os cruzeiros que fiz, nos maiores navios de turismo,
só me serviram para nunca mais os fazer. Mal estar que me impediu, de usufruir
a viagem... Casa na praia que foi
constantemente furtada em todos os meus pertences, até que cheguei ao ponto de
vendê-la. E a idade que atinge a todos e vai limitando a vontade de ir a
lugares muito distantes. O que antes era uma viagem ou caminhada de prazer,
hoje é um sacrifício.
A felicidade tem muito a ver com
nosso lado animal, vamos delimitando nosso “território” pontuando-o com os
lugares, recantos e lazeres que mais apreciamos e que fomos filtrando durante a
vida, dirimindo os complicadores. Sejam aqui ou em lugares no estrangeiro. Daí
- pelo menos para mim - a felicidade é fatiada, mas cada fatia tem uma boa e
considerável duração feliz. Temos ou nos oferecemos o direito sagrado [e
abençoado] da escolha.
Acabamos por ver claramente que à
medida que avançamos em anos na vida, precisamos cada vez menos de bens
materiais; cada vez menos de ostentação, queremos casas menores e mais confortáveis
do que grandiosas. Descobrimos que a maior riqueza está na família que nos
abraça e nos ama: filhos, netos - que alegria poder ver os netos crescer filhos
de nossos filhos.
Quando mais novos dizíamos : “Netos
nos dão duas alegrias, quando chegam e quando vão embora”. Hoje confabulo com
minha mulher: - Parece que são nossos... E são os filhos que os estão levando
embora de nós.
A felicidade, escreveu Hermann Hesse
- em outras palavras, mas nesse sentido: “pode-se vislumbrar a silhueta que aos
poucos se define na alameda do grande jardim da casa antiga, e se nos avizinha como
sendo ela, nosso grande e velho amor. Momento feliz.”
De outra feita, “quando menino um
estranho momento de repentina felicidade, em acordar e sentir a fria aragem
vinda da grande janela dos fundos do andar superior do casarão da avó, e poder
esticar-se na cama, e naquele domingo puxar o cobertor e se aquecer no fofo
colchão e travesseiro brancos. Ver a luz do sol como se nunca a tivesse visto antes
e olhar a cumeeira dos velhos casarões e suas telhas enegrecidas, o mais
próximo com uma única telha de vidro como um prisma levitando a emitir tons de cores
azuladas, filtrando o sol contra o azul do céu da manhã. Só soube explicar isso
- que parece absurdo - com uma palavra: Felicidade.” (Livro Felicidade, de
Hermann Hesse, Record - Rio de Janeiro)
Quando se alonga a vida em anos, uma
pequena ausência nos parece uma eternidade.
E cada retornar é um desejo de
permanecer o mais que puder juntos, de ficar sem a perder-se de vista. É a
silhueta que retorna pela alameda do jardim.
As pequenas coisas, uma coleção de
canetas tinteiro, olhadas, escolhida uma para uso, e guardadas as outras até a
próxima escolha; “papéis para escrita e desenho de várias texturas, guardadas
em um gavetão de um móvel comprado em uma casa de antiguidades...”. Neste
estágio percebemos que a felicidade está em toda parte, como a lenda judaica
“dos olhos que nos observam das frestas e por debaixo das pedras”; creio que
falavam dos olhos da felicidade, que é ela que nos encontra quando estamos
distraídos e despreocupados como crianças a brincar.
Rubem Alves - nosso grande e
injustiçado escritor, teólogo, professor, psicanalista, imenso educador e poeta
de todas as horas - dizia que encontrava a felicidade ao caminhar, nos
pássaros, olhando as árvores. Sua felicidade saltava no peito ao ver um ipê
amarelo todo florido, sentir o cheiro vindo dos vegetais, da terra molhada.
Levava consigo sempre um caderninho e uma caneta. Toda essa visão ainda que
delimitada ao seu caminhar era motivo para ser anotada e transformada em livros
ditados por sua criatividade e mente privilegiada de homem feliz.
A visão da morte não lhe afetava em
nada; dizia sentir tristeza, “não por deixar a vida física, mas a vida
sensorial, a que vê as belezas das flores, dos pássaros, das crianças.” Talvez
por isso tivesse dito: “ E quem é Rubem Alves?”. Um menininho respondeu: “O
Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos...”. A resposta do menininho
me deu grande felicidade. Ele sabia das coisas. As pessoas são aquilo que amam.
Suas cinzas, de acordo com sua vontade,
seus filhos espargiram ao pé do tronco de seu grande ipê amarelo, que plantou
ainda uma mudinha, em sua própria homenagem, em seu sítio em Pocinhos do Rio
Verde-MG - já que era um bom mineiro nascido em Boa Esperança lá nas Minas
Gerais.
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