segunda-feira, 29 de agosto de 2016

FELICIDADE [CRÔNICA ]

PROSA - CRÔNICA



FELICIDADE

Mauro Martins Santos


(...) Para nós as palavras são a mesma coisa que as cores da paleta são para o pintor.
Existem incontáveis delas, e surgem sempre novas, mas as boas palavras, as verdadeiras, são menos numerosas, e em setenta anos de vida não vi surgir nenhuma nova. (...) Entre as palavras existem para cada falante as prediletas e as estranhas, preferidas e evitadas, cotidianas que se usam mil vezes sem temer o desgaste (...) só pronunciamos ou escrevemos com cuidado e reflexão, como objetos raros: fazendo as escolhas que correspondem a essa sua solenidade.
Entre elas está para mim a palavra Felicidade. [Hermann Hesse]


Penso às vezes que a maioria de nós empenharia todas suas forças,  jogaria todas suas cartas para ter o lampejo brilhante da tão sonhada Felicidade. Nos dias frios, solitários, ruas vazias e o tom cinza do céu sem o sol reconfortante é a morada da tristeza em nós.
O vazio da vida se torna evidente, tentamos de todas as formas recolher em nosso entorno algo que nos alimente a esperança, traga-nos alegria. Tomamos de um livro, percorremos as linhas e as letras e não formamos juízo do que lemos, o pensamento divaga e não se firma no objeto que oferecemos a nós mesmos.
Eu particularmente na juventude e até a maturidade, já cheguei a pensar que se tivesse muito dinheiro não compraria a Felicidade que é abstrata, mas compraria objetos de meus sonhos, que me fariam feliz.
Compraria uma propriedade nas montanhas - já que adoro montanhas - outra na praia para os membros da família que adoram o mar, viajaria muito, conheceria muitos países e as esquinas do mundo. Buscaria todo entretenimento possível, buscaria sempre os melhores restaurantes, teria todas as mulheres que fariam minha cabeça, enfim nada de trabalho, só diversão.
Mas era jovem, muito jovem, para ter visto a crueza da realidade e as fronteiras com o território da verdade.  Ainda não havia percebido, vislumbrado e sentido que a felicidade é feita de momentos; sim, não há filosofia nesta afirmação, mas nua e crua realidade.
A Felicidade, tão cobiçada rainha, é uma hóspede que visita o hotel da argamassa de nós mesmos. Temperamental por natureza e inconstante por conformação, muito embora seja uma nossa imensa querida, e, adorada amiga amante...
Já se disse que sempre a pomos onde nós queremos e nunca a pomos onde nós estamos. Ela é uma pluma muito leve, um lampejar volátil e fugaz, por ser um estado de espírito sumamente impossível de se medir sua intensidade, tamanho e duração. Quando ela resolve ir embora ou mesmo não ter ficado, arruma ou pega suas malas e se vai. Para onde? Ninguém sabe. Quando volta? Daqui a muito, muito tempo, ou imediatamente está de retorno.
Isto tudo porque quem é o inconstante, fugaz e fraco gerador de condições propícias para cativar a Felicidade, sou eu, você, somos nós mesmos. Não sustentamos com tenacidade o campo de força de atração, titubeamos e a deixamos ir embora para depois chorar.
Raimundo Corrêa em sua poética escreveu:
Aparências
Se pudesse o espírito que chora/Ver através da máscara da face,/Quanta gente, talvez que inveja/Agora nos causa, então piedade nos causasse.

Razão pela qual muitas vezes, julgamos feliz quem mora em uma cidade litorânea, por ter todos os dias o mar e a praia a seus pés... Perguntei a uma jovem e bonita mulher funcionária do restaurante de um hotel: - Você vai sempre à praia que está a apenas um quarteirão daqui não vai? Ela me respondeu: - Faz cinco anos que não piso na praia, eu tenho quatro crianças, que crio sozinha, tive que abandonar o marido por motivos de prisões dele por drogas, bebidas e mulheres, e por me espancar, moro a nove quilômetros fora da cidade que percorro de ônibus ou a pé quando não tenho dinheiro para a passagem... Mudei de assunto e a abençoei espiritualmente, indo para a mesa almoçar e meditar.

Por esta razão é que a felicidade passa por nós por breves momentos. Eu feliz na praia, de férias sendo servido por aquela moça, que nem em sonho imaginava sua vida real.

Fiquei infeliz. Até que outro momento, outra brisa me trouxesse um pouco de possível felicidade.


Então quando jovem se pensava daquela forma, mais à frente com a chegada dos anos, fui vendo com a própria vida que nem tudo é como parece. Raimundo Corrêa foi citado e escrito, para sintetizar o muito que poderia ser dito sobre a Felicidade e as aparências que nos levam ao erro de ações, omissões e pensamentos.

Enquanto procuramos a felicidade além dos horizontes, pode ocorrer de a perdermos dentro de nós mesmos.

Cheguei à definitiva conclusão, que não quero mais os sonhos da juventude, e no fundo como era eu mesmo, nunca quis de verdade, apenas me iludia - se tivesse um iate ou um grande barco há muito o teria vendido, visto que os cruzeiros que fiz, nos maiores navios de turismo, só me serviram para nunca mais os fazer. Mal estar que me impediu, de usufruir a viagem...  Casa na praia que foi constantemente furtada em todos os meus pertences, até que cheguei ao ponto de vendê-la. E a idade que atinge a todos e vai limitando a vontade de ir a lugares muito distantes. O que antes era uma viagem ou caminhada de prazer, hoje é um sacrifício.

A felicidade tem muito a ver com nosso lado animal, vamos delimitando nosso “território” pontuando-o com os lugares, recantos e lazeres que mais apreciamos e que fomos filtrando durante a vida, dirimindo os complicadores. Sejam aqui ou em lugares no estrangeiro. Daí - pelo menos para mim - a felicidade é fatiada, mas cada fatia tem uma boa e considerável duração feliz. Temos ou nos oferecemos o direito sagrado [e abençoado] da escolha.

Acabamos por ver claramente que à medida que avançamos em anos na vida, precisamos cada vez menos de bens materiais; cada vez menos de ostentação, queremos casas menores e mais confortáveis do que grandiosas. Descobrimos que a maior riqueza está na família que nos abraça e nos ama: filhos, netos - que alegria poder ver os netos crescer filhos de nossos filhos.

Quando mais novos dizíamos : “Netos nos dão duas alegrias, quando chegam e quando vão embora”. Hoje confabulo com minha mulher: - Parece que são nossos... E são os filhos que os estão levando embora de nós.

A felicidade, escreveu Hermann Hesse - em outras palavras, mas nesse sentido: “pode-se vislumbrar a silhueta que aos poucos se define na alameda do grande jardim da casa antiga, e se nos avizinha como sendo ela, nosso grande e velho amor. Momento feliz.”

De outra feita, “quando menino um estranho momento de repentina felicidade, em acordar e sentir a fria aragem vinda da grande janela dos fundos do andar superior do casarão da avó, e poder esticar-se na cama, e naquele domingo puxar o cobertor e se aquecer no fofo colchão e travesseiro brancos. Ver a luz do sol como se nunca a tivesse visto antes e olhar a cumeeira dos velhos casarões e suas telhas enegrecidas, o mais próximo com uma única telha de vidro como um prisma levitando a emitir tons de cores azuladas, filtrando o sol contra o azul do céu da manhã. Só soube explicar isso - que parece absurdo - com uma palavra: Felicidade.” (Livro Felicidade, de Hermann Hesse, Record - Rio de Janeiro)

Quando se alonga a vida em anos, uma pequena ausência nos parece uma eternidade.
E cada retornar é um desejo de permanecer o mais que puder juntos, de ficar sem a perder-se de vista. É a silhueta que retorna pela alameda do jardim.

As pequenas coisas, uma coleção de canetas tinteiro, olhadas, escolhida uma para uso, e guardadas as outras até a próxima escolha; “papéis para escrita e desenho de várias texturas, guardadas em um gavetão de um móvel comprado em uma casa de antiguidades...”. Neste estágio percebemos que a felicidade está em toda parte, como a lenda judaica “dos olhos que nos observam das frestas e por debaixo das pedras”; creio que falavam dos olhos da felicidade, que é ela que nos encontra quando estamos distraídos e despreocupados como crianças a brincar.

Rubem Alves - nosso grande e injustiçado escritor, teólogo, professor, psicanalista, imenso educador e poeta de todas as horas - dizia que encontrava a felicidade ao caminhar, nos pássaros, olhando as árvores. Sua felicidade saltava no peito ao ver um ipê amarelo todo florido, sentir o cheiro vindo dos vegetais, da terra molhada. Levava consigo sempre um caderninho e uma caneta. Toda essa visão ainda que delimitada ao seu caminhar era motivo para ser anotada e transformada em livros ditados por sua criatividade e mente privilegiada de homem feliz.

A visão da morte não lhe afetava em nada; dizia sentir tristeza, “não por deixar a vida física, mas a vida sensorial, a que vê as belezas das flores, dos pássaros, das crianças.” Talvez por isso tivesse dito: “ E quem é Rubem Alves?”. Um menininho respondeu: “O Rubem Alves é um homem que gosta de ipês amarelos...”. A resposta do menininho me deu grande felicidade. Ele sabia das coisas. As pessoas são aquilo que amam.


Suas cinzas, de acordo com sua vontade, seus filhos espargiram ao pé do tronco de seu grande ipê amarelo, que plantou ainda uma mudinha, em sua própria homenagem, em seu sítio em Pocinhos do Rio Verde-MG - já que era um bom mineiro nascido em Boa Esperança lá nas Minas Gerais.


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