segunda-feira, 4 de julho de 2016



ALÉM DO PORTAL DA ETERNIDADE

Mauro Martins Santos

Como as gaivotas deslizam em meio ao invisível ar e voam porque creem que voam, e as ondas do mar se encontram sem nunca terem pertencido ao mesmo espaço líquido - vindas de antípodas partes dos confins do mundo - assim, nos encontraremos e nos uniremos após o resplandecente portal da eternidade.

Vão-se as gaivotas grasnando alegres, porque viver lhes basta, e viver é preciso, como morrer é de um determinismo preciso. Vão planando, tocando a água, volantes sobre as ondas; e nós também vamos seguindo-as nessa aventura...

Se quando às noites eu chorava - e tu resistias não uma só noite, mas diversas - não só a mim como a todos os seus filhos - tinhas a Fé que era a benção de Deus que vinha te encontrar pela manhã insone. Tua recompensa divina sempre foi ter sido coberta pela cúpula de estrelas, muito além e acima do telhado de nossa casa humilde.

A luz do sol sempre te glorificou sorrindo, e as estrelas cauterizavam todas as cicatrizes de teu sofrimento. No janeiro em que nasci - tu me contavas na infância que: “A chuva caia pesadamente e a cegonha tinha chegado toda ensopada, e que tu e vovó, tiveram que enxugar a mim e à coitadinha”.

Hoje isto me soa triste, porque após quarenta e cinco anos, fui conhecer a velha casa na Rua Humaitá onde nasci, e tu me mostraste após adentrar pela enorme porta de batentes pintados de azulão - em um comprido corredor - à esquerda, o quarto onde vi pela primeira vez a luz do mundo. Tu me disseste ainda, lá ao fundo, onde havia a cozinha: “Aquela janela, foi vosso pai quem fez para olhar e jogar milho para as galinhas no quintal” - assim mesmo: “vosso pai”, como ainda falamos em família; [Pronome possessivo da segunda pessoa do plural.]

Isto me tocou pungentemente o coração, e chorei contidamente por fora e copiosamente por dentro. Mais, porque os atuais moradores nos acolheram e fizeram olhos de imensa bondade, como quem recebe um ilustre visitante, sem nunca terem sabido de minha existência.

As sombras e os rastros em meu caminho são como projeções de um forte holofote emissor de luz e captador de imagens, que faz desfilar as formas capturadas em sua frente. As silhuetas e recortes não projetados das formas humanas contra um fundo branco, têm por origem certas panes de lâmpadas “dentro de mim” que ainda não foram bem conectadas - ou propositalmente desligadas.

Ao revés, tua luz estelar e de sol iluminante sorria nos dias de neblina invernal de meu coração de criança - de sempre criança para ti - aquela mesma criança que tu conduzias pela mão à escola, à casa do vendedor de jornais, revistas e figurinhas. A festa que tu fazias comigo, quando saia do envelopinho “aquela figurinha carimbada” faltante no álbum “Raças e Costumes do Mundo Inteiro”- e, repetida às almas de minha alma, o casal de filhos pequenos; hoje adultos e pais.

Jamais - por tua causa, duvidei da existência de Anjo da Guarda. Sei que em um tempo limitado pela vida - não pela morte - esse Anjo existiu. Saía do meio das flores, das rosas, palmas e dálias de um jardim que minha infância de amor, significativamente povoou... Amor imensamente terno, em uma perene estação de Primavera, que até hoje eu já velho, nunca se desbotou. Quando o dia lá se ia, a noite havia chegado, o beijo de um anjo recebia.

Elevava uma simples prece eivada de emoção, junto ao ouvido me dizia:
“Sou tua mãe apenas - quisera um Anjo ser - para bem assim ser lembrada”,
Hei de dar-vos - meus filhos - o amor, minha vida. Por teu pai, teus irmãos,
Quero ser mais que uma sombra que passa, ou como tu me vês: uma Fada."

Assim num balbuciar de visão luzente, junto à brisa fresca das madrugadas, que passeia entre as flores e ramagens, a tua presença de volátil aragem.
Vão-se os dias que forem, e se finde o meu Tempo, sempre serás iluminada, Minha dourada fada de alegria infinda foste mais que uma simples imagem.

O mistério da vida é talvez maior que o da morte - eis que a vida existe mas por si mesma não subsiste. A nefasta morte que também existe - persiste e não desiste - antiga como a própria sombra da noite, ela resiste. Vai-se a vida para a morte existir.

Hoje, tantos anos depois, onde a noite dos tempos me separa do Anjo que me fez sonhar e ser o que sou. Não tenho glórias para mim, mas para meus filhos e netos. Rememoro em verdade a importância de sopesar a existência. Passamos uma longa vida na ilusão de reter a sabedoria sendo que ela nos é volátil como a efêmera névoa do brilhante amanhecer.

Somos maus aprendizes da arte de conhecer o mundo; lembremo-nos quantas vezes nós dizemos de pronto que ele nos engana... Um esquilo, por exemplo, está na contagem da existência por instantes, e estoca o necessário para sua vida e seus filhotes. Não há desperdício de tempo, pois não há consciência do tempo para lhe fazer falta.

Nós outros, no entanto, desperdiçamos o tempo afetivo jogando-o como lastros ao mar; antes, muito antes, de o navio porventura vir a naufragar! Se vivêssemos a vida - da forma dos esquilos e das borboletas - constataríamos que o tempo não existindo, o iríamos ter para uso com sobra. No entando nós humanos com a noção do tempo, não temos tempo para nada...

Minha fada encantada também me contou sobre a vida e trabalho do João de barro e de sua companheira, a pequenina “joana de barro” , ambos lado a lado, esses seres alados vivem juntos por toda a vida - que não tendo a consciência do tempo - a natureza a eles eterniza.

Tenho profundos sinais que a vida me deixou - uns mais outros menos mas todos nós temos. Eu me feri mas também produzi a tempo, como as abelhas, o antibiótico de minha autocura. E, sobrevivi.

A lembrança do caminho com o Anjo que ao tempo todo me referi - vai além da simples formulação de conselhos e recomendações. Seu acompanhamento foi de proteção, porém incutindo responsabilidade e rumos. Suas exigências eram embasadas em severa vigilância quanto à honestidade e valoração aos estudos, respeito, espiritualidade, e ao que dizia ser o carro chefe da pessoa: o estrito apego à Verdade. O nunca faltar com a verdade, escudando-se na mentira como defesa dos covardes.

 Fazia uma cumplicidade invejável com papai, ambos endossando as ordens um do outro, e ponderando a portas fechadas o que fosse melhor para suas crianças. Emocionantes e firmes exemplos esses - que retomei aos meus dois filhos, tendo produzido magníficos resultados de vitórias, alegrias e orgulho. Uma moça e um moço dignos e honrados como pessoas humanas, na vida e em família.

Fui uma criança que teve o privilégio de ter tido um Anjo particular.
A lembrança daquela criança - me remete a crer que Deus ainda não se esqueceu da humanidade - pois ainda nos dota da presença, ainda que por curta jornada, de um Anjo de Luz e Benção como foi a querida e inesquecível por todas as causas: MINHA MÃE!


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Comentários:

Maria Iraci Leal em 23 janeiro 2016 at 1:19 Querido amigo poeta Mauro Martins Santos... Chorei, não consegui deixar de relembrar tal como escreveste, o lugar onde nasci, a convivência com minha mãe, as conversas e as promessas de seu amor incondicional... Lindo demais! Mais que uma homenagem, é o filho poeta que faz de sua pluma o eterno reconhecimento ao 'ser' mãe, anjo na Terra que nos recebeu em seus braços... Encantada e sensibilizada... Parabéns, bjs MIL.
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Monica Pamplona em 3 janeiro 2016 at 1:52
Tuas linhas tocam a emoção, através da sensibilidade de tuas palavras. O ser materno, por si só, já é dotado da grandeza do amor incondicional. Porém, diante de tua leitura, tal sentimento brilha com a intensidade da luz da saudade. Faz refletir no peito toda a sensação já sentida, da infância. Bom seria, que as mães fossem eternas. Mas... Felizmente ainda se pode contar, com tanta recordação em Amor e Carinho. Mais essa preciosidade para teu acervo, querido amigo. Parabéns.

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Dione Fonseca de Barros em 23 janeiro 2016 at 11:59
Lindo, muito lindo.  Não tenho palavras que se sobressaiam ao que disseste... Abraços!

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