sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O QUE DISSERAM OS OSSOS DE UM REI


                              O QUE DISSERAM OS OSSOS DE UM REI

          O reino percorrido pelo monarca e seu séquito era muito grande. Por onde passava, nem que não o quisesse, havia o alarido popular. Afinal era um rei, sua corte e exército ostensivo. Somente percorrendo seus domínios é que um soberano pode ver e sentir as diversidades e carências que assolam o seu povo. De várias partes dos campos, planícies e montanhas, de terras cultivadas longínquas até as mais próximas, o povo humilde acorria ao rei, uns para apenas contemplá-lo, vez que o incentivo clerical preconcebia a deificá-lo. Outros vinham para avistar o rei e beijar o anel do bispo; para levar consigo uma benção. O temor de uma maldição era maior que a reverência ao sacerdote. “Por amor ao santo se beija o altar.”
          Estes procedimentos da cúpula real eram conscientes, racionais, visavam desfazer curvas e atalhos e encurtar o caminho entre o poder e o povo crédulo, extremamente místico eivado de superstições, gente mísera e subserviente; de tudo eram necessitados e extorquidos. E mantê-los desta forma, era a maneira mais cômoda e menos trabalhosa encontrada na fórmula da composição do poder medievo.
Esta introdução tem por fim, apenas acusar as Eras e as castas de mandatários que retinam os procedimentos e atos de Poder ao decurso da Idade Média.

          Lá pela década de 1136, Idade Média, o rei e sua corte devidamente escoltados por seus cavaleiros, passavam pela aldeia de Northshire no condado de Yorkshire, na região de North Riding. Exerciam as funções da Justiça Itinerante, instituída pelo rei Henrique I.  A igreja o informara  que estava nos planos da Sé, por sua localização,  vir a localidade a tornar-se  sede de um priorado que se encarregaria da construção de uma grande catedral a São Joaquim e Sant’Anna (Avós maternos de Jesus). Os relicários de Santa Ana se encontravam largamente espalhados pelo Velho Mundo. Desde um fragmento de osso, a um dente, ou presumidos ossos maiores. Muita dissenção houvera entre o poder clerical, pela disputa de uma partícula de osso, de apenas insinuada e suposta legitimidade. Esses relicários davam muito poder às cúrias, mosteiros e catedrais, que tinham soberbamente aumentado o afluxo de penitentes, romeiros e fiéis às suas igrejas e com eles o movimento das feiras de comércio geral, consequentemente giro de dinheiro, inclusive para a construção da Catedral.
          O rei imbuído de suas prerrogativas seculares de governante e o bispo das suas, como representante da Sé, montavam belos cavalos, lindamente ornados, comparados aos demais subalternos. O rei reparou que um homem do povo, aldeão e serviçal, não lhe veio saudar como todos os demais súditos, continuando seriamente cabisbaixo em seus afazeres.
          O rei, que era arrogante e orgulhoso, foi incitado pelo bispo: “que ele como rei, estava sendo afrontado por um reles camponês.” Isto costumava ser motivo para um vassalo ser pendurado pelo pescoço na primeira árvore, e ali deixado até a morte. Não era permitido a familiares tirá-lo da forca, com pena de lhe fazer companhia. Seria deixado para ser comido pelos corvos. Esta era uma das sentenças comuns, mas tinha o conforto das rezas e benzimentos do bispo itinerante, antes da corte dar as costas ao enforcado.
          Mas também - vivenciando o momento - é “dever de um soberano inquirir um homem do povo sobre o que teria a falar em sua defesa”, no caso quanto à indiferença para com a divindade de um rei.
- Meu bom homem! - Assim falou o rei no tratamento usual da época. Em seguida: - Por que motivo menospreza a presença de vosso Rei e Senhor? Não sabeis que poderás pagar com tua miserável vida tal afronta? Por que o fazes?

          O velho homem humildemente responde: - Sou bastante idoso majestade, e muito já vivi. Conheci há muitas primaveras atrás um poderoso rei, que aqui viveu uns tempos, para tratamento de sua saúde que não ia bem. Quis ele usufruir da paz e sossego de Northshire. Morreu ele no mesmo dia e hora que um mendigo, que caiu morto na rua. Só temos este cemitério comum e pequeno, por estarmos muito distantes da sede do reino. Por essa razão foram aqui enterrados no mesmo dia.

          O velho rei, naturalmente minha Majestade, foi sepultado com todas as honras devidas a um divino e soberano imperador, em uma cripta monumental. Tudo pago com as moedas de ouro contidas numa bolsa de couro, deixadas com o xerife local. O fragilizado rei já pressentia seu fim! Apressou-se o aldeão a contar isso para o rei.

          Como Vossa Majestade pode ver o cemitério é bastante pequeno, por isso as sepulturas - de tão díspares criaturas -, têm que ficar tão próximas umas das outras.

          - Por essa razão, estavas abaixado a revolver a terra, e então não me vistes?   - Sim Alteza Real, sou o coveiro desse Campo Santo. E não vos dirigirei a palavra como um aldeão comum, mas de quem vê a vida de ambos os lados. Como sendo o único, a saber ler e escrever na aldeia, sou solicitado também a ajudar crianças a virem ao mundo, bem como vezes sem conta sepulto a seus avós e pais. Ajudo crianças a verem a luz e a cerrar os olhos dos que não mais a verão. Preparo como posso as crianças para a vida, e preparo os mortos para a última morada. Conduzo-os em minha carroça e os sepulto envoltos em lençóis. Como não há pároco na aldeia, também lhes faço a última prece. E prossegue:

          - Nesta vida Majestade, nós reconhecemos as pessoas comuns, os mendigos e os reis, por suas vestimentas. Por seus corpos saudáveis quando nobres, ou cobertos de doenças e arquejados pelo excesso de trabalho de sol a sol, quando for um servo. Depois, ó Excelsa Majestade, pelos túmulos: uma simples cova sem cruz pertence a um mendigo; a que tem uma cruz e uma pequena identificação: a de um camponês alquebrado; um magnífico mausoléu de granito, mármore de Carrara, encimado por uma escultura em mármore ou bronze e uma grande cruz do Cristo: é a de um importante nobre ou de um rei.

          Mas por lástima, meu rei e senhor,  certo dia veio a ocorrer tremendo temporal, com raios e ventos que arrancavam árvores e destelhavam casas. O temporal a tudo devastou.  Solapou a terra revolvida do cemitério, em grandes enxurradas, afundando e derrubando jazigos e mausoléus, grandes cruzes e esculturas. A tempestade devastou a terra. As ossadas humanas ficaram na superfície em quantidade incontável, todas misturadas com lápides e terra. Não ficou um túmulo sequer sem destruição. Crânios e demais ossos misturados a corpos  ainda não comidos totalmente pela terra. Seria impossível a separação e distinção dos ossos secos. Não conseguimos, eu e demais voluntários a coveiros improvisados, separar os ossos dos nobres em meio aos demais, por ser absolutamente impossível. Afirmo-vos Majestade, poucas coisas são tão iguais no mundo como os esqueletos e os ossos dos homens, sejam eles quem forem e a que raça pertencerem. Por mais que fizéssemos, nos foi impossível distinguir entre os ossos de servos da terra comuns, nobres, do rei e dos mendigos.

          Por esta razão meu rei, pela dedicação ao meu trabalho, o respeito, reverência e respeito ao grande e então compassivo rei aqui sepultado, esquecendo-nos de seu passado e somente vendo-o no presente, cuja lápide aqui está: Henrique I – Rei da Grã-Bretanha. Por isso não vos notei. Perdão Majestade!

          Todos soltaram um grito de surpresa e temor, ao verem a lápide gravada, tal a magnanimidade e coragem de um dos maiores reis-administradores que tinham conhecimento.

          O coveiro ainda disse: - O motivo de minha maior atenção foi devida a imensa semelhança entre os ossos quando destituídos da efêmera carne e vaidosa roupagem . Este teu humilde e insignificante servo está agora inteiramente disponível à sua digna vontade e justiça, Minha Majestade!


          O rei como não querendo ouvir mais tanta verdade, que lhe calava profundo, imediatamente maneando o cavalo, sem mais, ordena ao velho coveiro: - Prossiga em seus ofícios. E, a galope com seu séquito a segui-lo, sem olhar para trás, se afastou daquele lugar ermo.

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