segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A GAROTA DOS OLHOS VERDES E AZUIS

Desenho de ///StºS

A GAROTA DOS OLHOS VERDES E AZUIS

MAURO MARTINS SANTOS
Tive em minha juventude – reconheço - grandes alegrias, momentos de exultantes felicidades. Momentos eu digo, porque a felicidade não é um sentimento que “mora” conosco, ela nos visita, portanto é uma visitante. Nós a hospedamos, damos-lhe cama e mesa, todo nosso amor e carinho, afagos, toda a nossa atenção, imploramos-lhe que permaneça junto a nós, que fique mais um pouco, mas se resolver ir embora, ela irá. Nada, nem ninguém, força humana alguma a segura dentro de nós. A felicidade é uma grande e generosa amiga, mas temperamental. Tem sua vontade própria. E outra coisa, não aceita superficialismo artificial: bebidas, drogas e estimulantes. Ela se vai do “hotel” desta vez de forma definitiva. Leva junto outros hóspedes vizinhos, deixando o “prédio” vazio, e em ruínas. Não importando se a hospedagem era nova ou mais velha. Ficando cheia de fantasmas agressivos.

Por isso é lugar comum, mas pura verdade, quando dizemos: “a felicidade é feita de momentos”. Temos “momentos felizes”, que na maioria das vezes não chega a um dia inteiro. Outras vezes a felicidade é mais duradoura e nos dá uma “colher de chá”, permanece conosco semanas, até meses, mas não digam que foi de modo contínuo, ininterrupto.

A constância e a plenitude da felicidade é uma mentira. Nós todos temos uma meia felicidade, porque é da natureza desse sentimento não ser completo. E, o que não é completo não pode ser uma verdade. Sabemos que uma meia verdade ou uma verdade faltando um pedaço, é uma mentira. A verdade ou é inteira ou não é uma verdade. Assim não seremos meio felizes, mais ou menos felizes. Ou somos ou não somos. Como o caso daquela de Alexandre o Grande... Não existe Alexandre o Médio ou o Mínimo. Ou será “o Grande” o nenhum outro.

Assim acontece com a felicidade, e a quem diz que vive uma felicidade plena, ininterrupta, completa como fosse uma obra de arte acabada. Está mentindo! Ou para enganar a si mesmo ou aos outros. Muitas pessoas, para disfarçar sua frustração, decepção ou fracassos perante os anos, a carreira e a vida em si, acenam com a bandeira da felicidade incondicional.
Sabemos que não. Também sabemos que é possível ter o maior número de momentos felizes que pudermos na vida. Isso é verdade! A vida é uma sucessão de fatos díspares, como pedras: umas mais lisas, outras mais rústicas, algumas com arestas e pontas. Nem todas são seixos rolados.

Podemos preparar nossa mente, sede de nosso espírito, alma, de forma que eles sejam cada vez mais receptivos aos momentos felizes. A escala de valores a que atribuímos à felicidade é muito importante, se pequenos momentos nos alegram a alma é muito mais fácil obtermos maior número de momentos felizes do que aqueles que colocam muito alto os objetos de desejo. Os seus custos podem - e quase sempre estão fora da realidade em que vivem. 

Disse-nos o Grande Mestre “Não vos preocupeis com o dia de amanhã...” ou “De que vale ganhardes o mundo inteiro e perderdes vossa alma?”, ou para Jonas, que se estafava no deserto, ao encontrar um pé de hera, se acolheu á sua pequena sombra. De repente essa hera secou e morreu. Jonas em desespero se lamentou e lamuriou-se. Deus lhe fala: “Jonas, por que se lastimas por um pé de hera, o qual tu não plantaste, não regaste e da mesma forma que nasceu, morreu?” Assim somos todos nós. Preocupamos com o futuro, que de incerto não nos pertence. Ou ganharmos fortunas, sermos avarentos com o que temos se amanhã podemos perder a alma vivente que está em nós, que também não nos pertence e sermos como se diz: “Mais vale um cão vivo, do que um leão morto”. Ou lastimar a perda de bens ou coisas as quais são transitórias, muitas das quais, não plantamos nem regamos, foi nos dada pela Graça? Eis a felicidade. Como foi dito: - de Graça!


Na minha juventude, mais do que na fase adulta, fui sensível à busca da felicidade, porquanto as frustrações estavam de plantão me esperando para golpear. Mas sempre cultivei a busca e a leitura do belo. A busca do “saber ver” nos ajuda a encontrar o belo, a coisa, as pessoas que nos podem fazer felizes. Picasso disse: - Eu não procuro (o belo), eu o encontro.
Dessa forma, passei uma juventude com o maior número de momentos felizes que a maioria de meus amigos ricos, e eu sendo um auxiliar de sapateiro, cujo oficial era o meu pai. Estou inicialmente dedicando estas linhas, para dizer que busquei encontrar a beleza em todos os cantos. Sem pretensão de jactância ou proficiência alguma.

O que não nego e me mantém esperançoso até esta idade foi ser teimoso, persistente, perseverante, nunca tendo dó de mim mesmo vida afora, quando sabia que: “aqui no alojamento têm baratas aos montes, no acampamento escorpião é praga (de fato era) naquele alojamento os pernilongos levam a gente embora (milhares), a macarronada de ontem veio com barbante (aconteceu), a cabeça do frango veio com bico e tudo (idem, e com o milho do papo também.)  – se fosse o caso, diria a cidade o ano e o local, onde os fatos aconteceram.

Já na prática profissional, estar do lado de cá do cano de uma arma de um marginal, não é nada confortável (mas tudo passa). Isto "na busca de meu caminho" como escreveu Gorki em: “Ganhando o meu pão”.

Mas voltando, no decurso do tempo descobri que o desenho era uma arte em si, com começo meio e fim, e, que seu desenvolvimento com dedicação era um caminho para atingir a beleza. Desde bem cedo comecei a dar bastante importância às aula de desenho no Colégio. E frequentar aulas de desenho com o Professor Cação. Passei do desenho geométrico, que é a forte base para as perspectivas, linhas de fuga, proporções, formas e massas e volumes que ocupam o espaço, passei ao desenho artístico, que desenvolvi o mais que pude. Juntamente, sem desprezar nenhuma matéria, investi com muita dedicação também, às aulas de português. Passei a ser um bom aluno no geral, e ótimo em desenho, português e geografia, pois nesta matéria, me interessava muito saber os nomes de todos os acidentes geográficos, que formavam a paisagem dos países, os climas, estações, relação campo-cidade, rios, florestas, campos, cerrados e demais tipos de terreno que forram o planeta e os povos, pois iria num futuro fazer somatória com o desenho. Interessa-me também muito, o retrato. Ou seja, retratar no desenho, pessoas. Isto também tinha um objetivo mais imediato. Tinha a intenção de fazer o retrato de uma certa garota

Os intervalos de uma série de aulas (e até hoje) eram chamados por nós de “recreio”. O recreio para mim, era como disse, um “momento de felicidade”.
Enquanto o presidente do “Diretório Acadêmico dos Alunos” colocava os discos de Elvis Presley e os rapazes mais ricos, saracoteavam tentando na dança do “Rock and roll” imitar Elvis - para chamar a atenção das garotas é claro - eu nem bola dava para isso - estava ou retratando uma garota, ou lhe fazendo uma poesia. Muitas, se sentavam ao meu lado, tão juntinhas de mim que lhes sentia o calor do corpo.“Momentos felizes”...! Outras me pediam para ajudar-lhes nos desenhos: rosáceas, barras gregas, acharem os pontos de fuga, determinar a linha do horizonte, ou mesmo no “desenho do natural” obter as devidas proporções à folha de seu caderno, luz e sombra etc. Até mesmo no francês, idioma que tinha uma facilidade natural, e tinha aulas com  a Valdete Moreno em casa (ela era amiga da família). 

Mas não eram só as meninas que me procuravam para acudir dificuldades com o desenho ou redações, alguns colegas rapazes também: um, há anos, foi prefeito da cidade vizinha; outro já era riquinho (pais nascidos na França), herdou tudo, sendo filho único: o Alexandre Avignon. Outros se tornaram médicos, engenheiros e até um sacerdote, Frei Rui Moraes, girou o mundo e voltou a um seminário vizinho de frades franceses da ordem de São Francisco. 

No futebol, como fazia com tudo, dediquei-me exaustivamente aos treinamentos, com o treinador de goleiros do Moji Mirim Esporte Clube, então para ingressar à “Segunda Divisão”, que mais tarde passaria à “Especial” como está até hoje. Assim, tinha um verdadeiro fã clube de garotas, que me achavam o melhor "goleiro do mundo” - coitadinhas! Era muito bom, sem falsa modéstia, mas a falta de discernimento técnico delas potencializava meu desempenho. Era certo que o “Flamenguinho” nosso time juvenil, não tinha mais adversários. Este time teve em suas bases grandes nomes como Paulo D., que foi para o Santos FC. E outros para o Guarani de Campinas e Ponte Preta, outros ainda chegaram ao Flamengo do Rio. Eu voei mais baixo - cheguei aos amadores do M.M.E.C. e o goleiro que fora meu reserva, subiu com o Moji para a “Primeira Divisão”, hoje a especial. Bem, mas isto já é outra história...

Voltando às minhas atividades de jovem colegial: fazia mais sucesso com as garotas  ( apesar de ser pobre) do que os que eram mais abonados. Nos clubes, por exemplo, ia até a porta; como não era sócio voltava para sentar-me na praça e conversar sobre música com o sargento do Tiro de Guerra que era jovem e solteiro e tocava saxofone: jazz, blues, swing, música erudita e até músicas populares. Falávamos das grandes orquestras como Ray Conniff, Billy Vaughan, Glen Muller e demais. Outras vezes junto a dois ou três amigos que iam fazer ou já estavam fazendo filosofia: Josué Rodrigues, Manoel Macedo de Lima, Antônio Carvalho e até Benedito R. de Oliveira, também filho de um sapateiro que ganhou uma bolsa de estudo e foi para Coimbra estudar Medicina - ele Benedito, era barbeiro - um dia contarei a história dele.
Chegamos a ela, a garota dos olhos verdes e azuis. Como a conheci? Ela, eu não sabia, era uma minha admiradora. Gostava de me ver jogando futebol de salão no Colégio, gostava de meus desenhos, gostava de minhas brincadeiras (sempre sadias, mas às vezes tétricas) como um dedo polegar achado na calçada do necrotério que ficava em frente ao colégio. Esse dedo eu mostrava para as meninas, um dedo já roxo e com a unha amarelada e sangue em volta. Muitas garotas tinham ânsia, outras quase desmaiavam, outras choravam de nojo e medo. Só que tinha um detalhe: a garota dos olhos - verdes e azuis - ficava curiosa e não tinha medo! Olhava para o dedão e olhava para mim. O dedo em uma caixinha. Todas as outras debandavam só ficava ela. Com seus olhos bem verdes cor de folha vegetal, me fitando e eu admirando aqueles olhos verdes tão profundos. Ela dava um sorriso e apareciam duas covinhas em cada lado de seu rosto. Ela - lembro-me bem disso - corava muito facilmente. Possuía os cabelos castanhos claros. Mais baixa do que eu, não muito. Podia usar salto alto que atingiria minha altura de 1,75, sem afetação caso andássemos juntos.
Estranho para mim, foi o fato dela não ter se assustado e ficado curiosa.  Perguntou-me com sua voz delicada muito de acordo com seu visual: “Onde mesmo você achou esse dedo?” –  havia em seu belo rosto corado e no brilho daqueles olhos verdes profundos, certa dúvida quanto a veracidade da estapafúrdia exibição.
Não resisti, disse-lhe: - Sônia, para você, eu conto como é feito isso. É meu próprio dedo que está aqui. Passei azul-de-metileno e iodo nele, pus algodão nesta caixinha cortando um lado no formato de meu dedo polegar e o acomodei dentro dela. É um truque sua boba...
- Não sou boba – me respondeu. - Porque já estava desconfiada, você não seria capaz de fazer isso de verdade... Eu te conheço!
Esse “eu te conheço” soou para mim como um “eu te amo”.
Os jovens são emotivos e impulsivos, mas são espertos também. Existem jovens e jovens. Todos que fomos jovens sabemos disso!
Passou o tempo. Sempre conversávamos no interior do colégio, no galpão do “recreio”, nos corredores. Ainda não havíamos tratado nada. Nenhuma incursão até a sorveteria (mesmo porque sempre estava sem dinheiro). Encontrávamos à noite, depois íamos comprar pipocas e sentar na Praça Central da cidade defronte à matriz (bela réplica do gótico tardio).
Interessante, que apesar da grande beleza de Sônia, comentada por suas amigas e meus colegas que diziam: Você é sortudo mesmo, que garota linda é sua namorada. A Iza, (Luiza) dizia-me sempre a Sônia é linda, você é um rapaz de sorte. Com tantos querendo conquistá-la... Mas sabem quando aquele amor afetuoso não havia chegado ainda? Até o dia em que ela me disse: - Sabe o que mais admiro em você? Respondi: - Não! A sua educação! – afirmou ela.
Refleti no peso que ela colocou naquelas poucas palavras: "sua educação". Divaguei. Ela não está elogiando somente a mim, mas aos meus pais, além de mim existem muitos outros fatores que implicam – pelo menos implicavam – quando se afirmava: Você é educado (a). Existe a criação, a família, a escolha dos amigos, a ausência de vícios, uma crença. Um modo de vida. O modo de vida conquista, pensei. Não é isto que sempre busquei? Nunca quis grandes reconhecimentos, mas esse reconhecimento era diferente. Não visava as coisas materiais, mas atingiu diretamente meu senso comum. Toda minha busca pareceu-me terminar ali. Com as palavras curtas, quase sussurradas, como era sua voz, sem corar, mas direta: “O que mais admiro em você é sua educação!" Momento intenso de felicidade!
Nas coisas do amor como diz, Rubem Alves, “fazemos amor com as palavras”. Quando se faz amor com as palavras, fazemos poesia, Sônia merecia além de meu amor uma poesia. Eu iria fazê-la e lhe entregar de surpresa. Passei a amar Sônia. Nem ela própria nunca soubera qual fora o gatilho que detonou de verdade meu amor por ela.
As palavras nos fazem felizes ou infelizes. As palavras dela me fizeram imensamente feliz. Não foram os beijos, nem os: “eu te amo”. Mas aquelas, que em outro contexto, cessariam num “obrigado”. Em coisas de amor não se deve agradecer. Estraga tudo! Disse: - Imagine. Apenas trato bem as pessoas, e você é observadora! Ela: - Não, você é especial. Admiro sua educação.
Pensei divagante, na Idade Média. Deveria ser isso que conquistava as damas, os Cavaleiros (mais tarde cavalheiros) com sua cortesia (faziam a corte). Nos séculos seguintes, o “cavalheirismo”, correr e jogar a capa para as damas passar por cima e não sujar os pés na lama. Abrir a porta das carruagens e oferecer o braço como apoio, para as damas subirem. Os genes das verdadeiras damas ainda deviam estar vivos nos corpos de muitas mulheres atuais. Porque não? Teria Sônia herdado genes que provinham desde a Idade Média. Teria eu, com esta minha tendência constante em desenhar castelos, a bico de pena (nanquim) retratar Guinevere, Lancelot, Artur, e Camelot, muitos castelos da Bretanha, França, Escócia, Gales, Portugal, Espanha, muitas donzelas e princesas, as justas entre cavaleiros e suas armaduras, executados com detalhes realistas (fiz várias exposições com desenhos de castelos medievais): “The Medieval Castle”. Claro que eram apenas divagações. Mas aumentava o romantismo, quando pensando nisso a via tão linda, usando uma tiara. Imaginava: Sônia é uma donzela saída da história e caída em meus braços.
Só a via a noite ou nas sombras dos galpões do colégio, interior da igreja, nos corredores sombreados, até porque, encontrava-me com ela de acordo com a ocasião e os momentos apresentados. Como disse antes, não havia ainda em mim um ímpeto em buscá-la, a qualquer momento.
Após as curtas palavras ditas por ela naquela noite, de cálida brisa, um vívido luar e um céu muito estrelado. Havia até certo perfume especial nela que eu sentira, mas não retivera e agora o sentia. Porque tudo compunha um cenário mágico. Vinha-me à mente: “Sabe o que mais admiro em você? - Sua educação!”
Aquilo houvera me soado com uma pureza cristalina, uma magia benfazeja e eu a beijei terna e demoradamente. Surgiu em mim um misto de carinho e fervoroso amor, um espírito de gratidão não a ela, mas às forças que me fizeram encontrá-la. Iria procurá-la mais e mais vezes agora. Eu sabia que o que sentia por ela não era outra coisa senão um profundo e cálido amor.
Certo dia, em um quente e ensolarado verão, já havia me formado, ela ainda não. Estava no último ano do então “Científico”, ela dizia que iria ser enfermeira, iria fazer a faculdade de enfermagem depois doutorar-se, embora já lecionasse música como professora particular em sua casa na Avenida Barão do Rio Branco, tocava piano (hoje chamamos de
 “teclados”), também violino, flauta e violão. Tinha estudado desde os quatro anos de idade, os doze anos exigidos para o piano e violino em Campinas, onde morava com uma tia já idosa (que se esquecia que estava no Brasil e quando falava em polonês corava como Sonia).
Encontramos-nos em frente ao Hospital da Santa Casa, o mesmo hospital que possuía o tal necrotério nos fundos, onde disse ter achado na calçada o dito polegar. Começamos a conversar e os que se amam fitam-se nos olhos – falam mais que as palavras – e eu fiquei ao fitá-la, estarrecido!...
Ela percebendo meu espanto, preocupou-se seriamente comigo, e eu a fitava e mais inquisitivo me punha. Ela dizia-me: O que foi? Fiz alguma atitude que não gostou? Está ofendido por alguém ter falado alguma coisa de mim para você? Fale comigo!
Falei surpreso e meio gaguejante. Mas você não tem os olhos mais verdes que as folhas desta palmeira (próxima a nós), ontem mesmo eu vi!? Ela se pôs a sorrir lindamente com suas covinhas no rosto e corou muito.
Sabe - como é algo que me pertence e há muito tempo, escapa de ser citado em conversas: eu tenho os olhos verdes na sombra ou à noite. E ao sol, na claridade eles são azuis.
Disse a ela: - Mas como é possível duas belezas em uma só pessoa Sônia? Na sombra seus olhos tem a cor mais verde que as folhagens e ao sol são mais azuis que este céu que vemos agora!
Ela riu: - Duas belezas! Vem ele com a educação e gentileza. Nem uma, quanto mais duas belezas!
Não lhe disse por que sua modéstia não iria concordar, mas eram três intensas belezas a compor seu lindo rosto: A de olhos verdes , a de olhos azuis, e sua alma suave e meiga, sempre pronta a agradar e a servir.
Como sempre diz Rubem Alves: Tempus Fugit. O tempo não cessa, não pára. Sônia, se forma enfermeira. Volta para sua cidade no Portal das Águas. Sua vocação para a enfermagem era tamanha que disse-me por carta que iria ingressar nas fileiras de missionários “Além Fronteiras” que iam para a África, Angola e Moçambique. Tentei demovê-la da ideia, não pela causa que era nobre, mas pelos perigos que iria correr, o tempo que isso nos roubaria, mas sobretudo pelo amor entre nós que era acima de qualquer aferição; incalculável por ser abstrato, mas dois corações sabem medir sua dimensão. Tudo já estava acertado, dizia-me na carta. Malas prontas, grupos de trabalho separados, enfermeiros, médicos, teólogos, agrônomos, dentistas...
Era irreversível sua decisão!
Queria ver seus olhos mais uma vez, acariciar aquela que tanto amava.
Ela disse-me na economia das palavras que sempre usava, que era melhor assim. Ir-se, sem me ver, seria menos traumático, estava fazendo aquilo, não por que deixava de me amar, mas ao contrário porque me amava muito, e seu íntimo, sua crença e a compaixão especialmente pelas crianças, morrendo sem nenhum cuidado, de desnutrição, pessoas que nada sabiam, nem ler, nem escrever, nem falar a própria língua dos colonizadores, o português. Ela citou-me Paulo e sua missão, seus sacrifícios, suas prisões tudo por amor às pessoas e sua fé. Paulo, o de Tarso, o apóstolo do Amor. - Por tudo isso meu amor, um dia, você vai orgulhar-se de mim!
Não tive mais argumento. Só falei: - Um dia você volta? Respondeu- me: - Voltarei. De qualquer forma voltarei, para o Portal das Águas... Voltarei!
Soube por intermédio de seus tios, que residem na cidade vizinha que comentaram na igreja a meu irmão, cunhada e sobrinhos que ela tinha feito Doutorado em Portugal na sua área de saúde.
Hoje...
Ela se encontra descansando na eternidade, na quadra 142/11 no cemitério do Portal das Águas, em seu túmulo tem uma placa de bronze com a seguinte inscrição:

DRª SONIA KRISTINA BARROS KOWPERIZSKY
“VIVEU PARA DOAR SUA VIDA, SEU AMOR E DEDICAÇÃO AO PRÓXIMO.
A DOUTORA SONIA FOI UMA HEROÍNA.”
MISSÃO “ALÉM FRONTEIRAS” - ETERNA GRATIDÃO.


Seu nome de solteira estava intacto. Ela nunca se casou. Além disso, também soube por seus mesmos tios na igreja, que ela, contraiu várias vezes malária e teve suas resistências minadas, mesmo assim disseram que ela continuou atendendo crianças e adultos contaminados com a febre, malária e doenças não dectadas e contagiosas, até que uma febre hemorrágica a atingiu. Dada sua fraca resistência, faleceu.

Derrubei lágrimas sentidas ao olhar sua foto no túmulo, seus olhos estavam bem verdes. Como se os lugares por onde andou fossem sombrios.
Ao me retirar, sob o sol daquele dia de verão, voltei-me para um último olhar - o amor não mente - a luz do sol refletia forte em sua  foto: Seus olhos estavam azuis!...
   

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